sábado, 30 de agosto de 2014

Sobre filosofia e ser filósofo... (Introdução)

INTRODUÇÃO E RESSALVAS IMPORTANTES

É certo que parece pretencioso o fato de nós, calcando os primeiros passos da formação filosófica, da educação no sentido estrito do termo* (e tomaremos o 'ser filósofo', em parte, como ser 'educado' nesse sentido abordado), sem uma formação acadêmica oficial na área, venhamos a falar sobre o que é a filosofia, o que é ser filósofo e afins. A tarefa torna-se mais audaciosa quando observamos renomados pensadores tupiniquins de nossa época, como o filósofo Francisco Razzo, furtando-se ao título de filósofo, preferindo a alcunha de estudante e professor de filosofia, até que atinja a 'maioridade intelectual'*. Seja como for, podemos nos considerar filósofos ao menos no sentido socrático* (e é esse o sentido complementar que usaremos aqui para ‘filósofo’ - a menos em relação à uma auto-imagem -, o que poderá incluir todo verdadeiro estudante, que não se evade à busca da verdade, como haveremos de explicar), pois estamos mui cientes de nossas limitações intelectuais em vários pontos, em nossa ignorância em outros tantos, e ansiamos por conhecer, por entender, justamente para corresponder à esse anseio pelo conhecimento que, segundo Aristóteles, nos é tão natural*. O que pretendemos com essa série de artigos é externar algumas elucubrações efetuadas por nós e que já trarão alguma luz sobre os temas. É possível que, na medida em que desenvolvamos nossos estudos, venhamos a alterar algumas concepções, o que pretendemos também registrar. De qualquer forma, ainda que alteremos vários pontos, já teremos muito bem definido os assuntos, já teremos começado, e se começa sempre de algum lugar. Feitas essas ressalvas, passemos, pois, ao penoso, porém recompensador, labor.



O ESPÍRITO FILOSÓFICO

Vamos definir filosofia considerando a própria formação do espírito filosófico. Graciliano Ramos, no célebre 'Vidas Secas', nos reporta uma situação cotidiana mui pertinente ao nosso propósito de agora. O livro, em suma, retrata uma família vivendo no sertão, em meio à seca. Descrições triviais sobre a vida dessa família desenvolvem o texto. A família é composta pelo pai, Fabiano; pela mãe, Sinha Vitória; pelo menino mais velho e pelo mais novo. Num dos capítulos, Ramos narra o seguinte e rico evento:

Deu-se aquilo porque Sinha Vitória não conversou um
instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido
falar em inferno. Estranhando a linguagem de Sinha Terta,
pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente
a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma
descrição, encolheu os ombros.
O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado
no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata :
deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro
adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado
e bateu palmas - Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e
timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou
à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe: - Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe
um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o
terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à
beira da lagoa vazia. (RAMOS, p. 55-56).

E o que tem isso a ver com filosofia? Tudo! Segundo Mortimer Jerome Adler e Charles Van Doren, o filósofo é aquele que leva em consideração as questões das crianças.
"A criança é um questionador natural. Não é o número de perguntas que ela faz, mas sua natureza que a distingue do adulto. Os adultos não perdem a curiosidade que parece um traço inato do ser humano, mas a qualidade dessa curiosidade vai se deteriorando" (ADLER; VAN DOREN, p. 277).
 Notem que o menino mais velho tinha uma questão legítima. E como ele foi tratado? Como os que insistem em questionar o são: hostilizado.
Vejam que essas questões incluem as questões existenciais, típicas, nos ditos populares, dos adolescentes. É uma experiência universal, o que indica ser ela realmente inata ao homem, como observa Jostein Gaarder: "Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo" (GAARDER, p. 25), comprovando a observação aristotélica de que a filosofia nasce do espanto*.O homem começa primeiro compreendendo as questões da linguagem, e as questões básicas da inteligência, e, quando chega à 'idade da razão', começa a considerar as questões existenciais* e filosóficas em geral, como admite o filósofo Thomas Nagel:

"Nossa capacidade analítica geralmente já se encontra bastante desenvolvida antes mesmo que tenhamos aprendido muita coisa sobre o mundo, e por volta dos catorze anos muitos jovens começam a refletir sobre questões filosóficas por si sós - sobre o que realmente existe, se podemos chegar a saber alguma coisa, se existe algo que seja realmente certo ou errado, se a vida tem algum significado, se a morte é o fim de tudo" (NAGEL, p. 1-2).

Todas elas são questões mui espinhosas, delicadas, e que, não sendo consideradas com a máxima precisão, não são resolvidas. Mas considerá-las sem resolvê-las pode ser demasiadamente assustador. Paralisante. É por isso que essas questões são preteridas, deixadas para um depois que nunca chega, a não ser em momentos de crise, ou, na melhor das hipóteses, numa discussão intelectual indiferente.
Aliás, aqui não seria capricho se parássemos um pouco para falar de nossa realidade, de como esse fenômeno do desprezo à filosofia ganha ares culturais (por mais paradoxal que seja) aqui na Terra de Vera Cruz. E, com a palavra, o importante filósofo brasileiro, Olavo de Carvalho, e suas sagazes observações:

"Sim, no Brasil, cultura e inteligência são coisas para depois da aposentadoria. Quando todas as decisões estiverem tomadas, quando a massa de seus feitos tiver se adensado numa torrente irreversível e a existência entrar decisivamente na sua etapa final de declínio, aí o cidadão pensará em adquirir conhecimento - um conhecimento que, a essa altura, só poderá servir para lhe informar o que deveria ter feito e não fez. Antevendo as dores inúteis do arrependimento tardio, ele então fugirá instintivamente do confronto, abstendo-se de julgar sua vida à luz do que agora sabe" (CARVALHO, p. 31-32).

Claro, a citação fornece muitos insights que serão trabalhados adiante. Protelemos. Apenas vejamos onde é que estamos. Filosofia, aqui, é apenas capricho...
Portanto, a primeira característica do verdadeiro pensador, do filósofo, é a coragem e perseverança para lidar com essas questões, certamente já engendradas na sua infância. O que o leva aos estudos é justamente sua curiosidade, seu interesse em ver tais questões resolvidas. Quanto mais estimulante for o cenário em que tal mente vive, mais fácil de ela não abandonar a empresa filosófica a que todos nós, por constituição natural, somos destinados.

Gaarder está de acordo que o melhor jeito de se aproximar da sabedoria é justamente seguindo o espírito da criança, é dar vazão ao espírito inquiridor. Mas esse autor, em particular, levanta novas questões sobre o espírito inquiridor:
"O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas. [...] Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. [...] Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo. É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las" (GAARDER, p. 25).
Quanto a esse último ponto, o de que é mais fácil
Ele diz não haverem muitas questões e que, embora a filosofia seja particularmente principiada pelo inquirimento, esse é apenas o primeiro passo. Vamos explorar essas duas propostas.
Primeiro, em certo sentido, não existem, realmente, infinitas questões filosóficas básicas. Elas basicamente são sintetizadas nas questões que erigem uma cosmovisão*. E James Sire nos tranquiliza observando que, embora assumam roupagens distintas, existem, no fim das contas, um número muito definido de cosmovisões: "O fato é que, embora, a princípio, as cosmovisões pareçam proliferar, elas são constituídas de respostas a questões para as quais há apenas um limitado número de resposta" (SIRE, p. 303).
Mesmo assim, não deixam de ser questões complexas, e muitas propostas foram elaboradas para solucionar cada uma delas. Com isso, tangemos a segunda questão. Elaborar o questionário 'do espanto' é essencial para o filosofar. Mas filosofar não se restringe a isso. De fato, ninguém pode almejar a sabedoria se não souber questionar. Mas saber questionar é o primeiro passo. Para passarmos de polemistas baratos, de irresponsáveis que fazem algo além de levantarem dúvidas sem solucioná-las, como alguém que tem a iniciativa de colocar a comida ao fogo mas não atenta-se para o ponto em que a comida deve ser retirada, temos de prosseguir. E é aqui que encontramos uma série de dificuldades. Precisamos reconhecer o que Craig diz em sua 'Apologética para Questões Difíceis da Vida':

"... sempre me impressiono como fato de que é muito mais fácil levantar questões difíceis do que respondê-las. Estudantes e leigos que têm pouco treinamento filosófico out teológico algumas vezes levantam questões tão difíceis que eles mesmos não conseguem imaginar o grau de complexidade em que elas se encontram" (CRAIG, p. 7). 

Voltaremos, noutra oportunidade, de forma mais demorada, à essa problemática.

Com o artigo de hoje, pretendemos mostrar apenas um ponto que responde à indagação sobre a relevância dos estudos filosóficos, sobre a nobreza de buscar ser um filósofo. Em suma, podemos dizer o seguinte: o engajamento filosófico é a enteléquia do homem. Ser filósofo é seguir os 'instintos' naturais do ser humano. Está de acordo com seu apanágio. É, portanto, algo mui 'natural', em certo sentido. Para qualquer alma desobstruída de ocupações obstruidoras, e com um pingo de decência, nobreza e coragem, a reflexão filosófica é uma demanda inevitável e impreterível do espírito humano.

Parte 2
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* Olavo de Carvalho nota que "educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro [...] é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem" (CARVALHO, p. 355-356).
* Razzo, num áudio no youtube, diz que há um acordo entre os cavalheiros graduados em filosofia de se denominarem filósofos apenas após os 60 anos! Bom, é claro que temos muitos antigos filósofos, assim reconhecidos pela maioria, que outorgaram-nos elucubrações excelentes antes desse período, o que parece contestar o professor Razzo. Mesmo assim, quem somos nós, ainda, para discutir. Fica aqui a observação a título de completude.
* Para compreender o sentido socrático do termo, leia este artigo de nossa autoria: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/05/socrates.html
* Dissertamos sobre isso no seguinte artigo: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/06/a-etica-em-aristoteles.html. O ponto culminante, para os propósitos dessa nota, encontram-e no subtítulo 'a origem da filosofia'.
* Idem.
* Dissertamos sobre essa questão no seguinte artigo: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2013/10/a-crise-existencial-e-resolucao-no.html
* Para certificar-se do que estamos falando, leiam esse artigo, também de nossa autoria: http://mcapologetico.blogspot.com.br/2011/10/cosmovisao-parte-1.html

BIBLIOGRAFIA


ADLER, Mortimer J; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.

CARVALHO, Olavo de; BRASIL, Felipe Moura (org.). O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. Rio de Janeiro: Record, 2013, 616p.

CRAIG, William Lane. Apologética para questões difíceis da vida. Tradução de Heber Carlos de Campos. São Paulo: Vida Nova, 2010, 192p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à filosofia. Tradução de Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 107p.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 120. ed., 2013, 176p.

SIRE, James W. O Universo ao Lado: um catálogo básico sobre cosmovisões. Tradução de Fernando Cristófalo. São Paulo: Hagnos, 4. ed., 2009, 384p.

2 comentários:

  1. Bom texto. Demonstra amor ao conhecimento. Parabéns pela escolha e por desafiar tradições.

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    1. Obrigado, André! 'Amor ao conhecimento' está, justamente, no âmago da questão. É o ponto nevrálgico. Se percebes isso, sinto-me feliz e lisonjeado.
      Nos vemos na próxima aula! hehe

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