quarta-feira, 14 de maio de 2014

A ética em Platão

[Para conhecer a Metafísica, Antropologia e Epistemologia de Platão, que precedem esta discussão de agora, clique aqui]

Aqui, neste ponto, é que Platão demonstrará a influência de Sócrates em seu pensamento. Na verdade, muito do que foi dito em Sócrates será observado aqui, e, quem sabe, o que é dito aqui, em partes, é mesmo de Sócrates (ou ainda o contrário: muito do que foi dito alhures pertente, na verdade, a Platão). Platão, pois, segue os dois projetos. Ele não fica por conta apenas das reflexões metafísica e epistemológicas. Ele inclui à esse projeto pré-socrático o projeto sofista. Assim, Platão é o primeiro a buscar elaborar uma cosmovisão completa. Ele aborda metafísica, epistemologia, antropologia e ética. A ética é assunto deste texto. A política fica para o próximo.
Entendemos, a despeito de Maquiavel (ou do que normalmente se concebe sobre sua teoria), que a política decorre da ética. Talvez boa parte da controvérsia gire em torno de uma mera disputa de termos (quando formos pensar em Maquiavel iremos expor a questão com mais detalhes). Mas, recorramos a Brisson como porta voz: “Quando se considera a moral como um sistema de comportamentos admitidos e incentivados numa sociedade, pode-se definir a ética como a avaliação racional da moral. Esta definição supõe, portanto, que, nesta sociedade, alguns comportamentos são admitidos e incentivados e outros proibidos e condenados” (PRADEAU, p. 39).
A ética é, pois, uma avaliação racional das regras de uma sociedade. Primeiro, pois, vamos conceber a ética e, então, passar para a política.

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA E SUA FACETA ÉTICA

Já vimos como a concepção platônica sobre o homem influencia em sua epistemologia. Dessa vez mostraremos a ética decorrente da concepção de Aristocles sobre a ética. Brisson bem observa ao notar que a concepção do que é o homem precede as concepções éticas: “A avaliação e a sanção não são, no entanto, evidentes, pois elas implicam uma representação prévia do que seja um ser humano” (PRADEAU, p. 39). Pois bem, façamos isso.
Foi observado que Platão concebeu a alma humana sob três aspectos diferentes*. Temos a Razão; o Espírito, ou ‘Sentimentos’; por fim, os Apetites, os ‘Desejos’. Embora todo ser humano possua razão, sentimentos e apetites, existem variações nos graus, i. é, algumas pessoas são mais racionais, outras mais ‘sentimentais’, e, por fim, outras são mais, digamos, hedonistas.
Pois bem, somada à exposição que já fizemos, acrescentemos o seguinte comentário de Durant, que já irá esboçar que tipo de atividade, ofício, é ideal para cada tipo de pessoa, conforme a proeminência de um aspecto da alma: “Essas forças e qualidades estão todas em cada indivíduo, mas em graus variados. Certos homens não passam da personificação do desejo; alma irrequietas e gananciosas, que ficam absorvidas por buscas materiais e lutas; que ardem de cobiça de artigos de luxo e exibição, e que sempre são um valor zero aos seus ganhos ao compará-los com seus objetivos sempre distantes: são estes os homens que dominam e manipulam a indústria. Mas existe outros que são templos de sentimento e coragem, que não se importam tanto com aquilo pelo que lutam quanto com a vitória em si mesma e por si mesmo; eles são combativos, e não gananciosos; seu orgulho está no poder, e não na posse, seu deleito está no campo de batalha e não no mercado: são estes os homens que fazem os exércitos e as marinhas do mundo. E por último estão os poucos que se deliciam com a meditação e com a compreensão; que anseiam não por bens, nem pela vitória, mas pelo conhecimento; que deixam o mercado e o campo de batalha para se perderem na tranquila clareza do pensamento solitário; cuja vontade é uma luz, e não um fogo, cujo abrigo não é o poder, mas a verdade: estes são os homens de sabedoria, que ficam de lado sem serem utilizados pelo mundo” (DURANT, p. 39). A título de completude, e para reforçar o conceito, mais uma citação, dessa vez de Nash, não nos prejudicará: “Platão faz essa distinção tríplice por causa dos óbvios conflitos que os homens sentem dentro deles mesmos. A parte racional da alma humana (o condutor) busca a verdade e adquire conhecimento. Essa parte racional da alma é a sede da imortalidade humana; nenhum animal possui tal faculdade. As partes espiritual e apaixonada da alma são as faculdades do seu lado irracional. A parte espiritual da alma [...] exemplifica a ira, o ressentimento e o desejo de excelir; a parte apaixonada da alma [...] busca os prazeres da comida e do sexo, bem como a satisfação de outros desejos corporais” (NASH, p. 95). O problema com Nash é que ele fala da parte ‘espiritual’ apenas associada a sentimentos ruins, o que não é o caso em Platão. É legal, também, Nash relembrar a questão de que apenas a parte racional é que é permanente e distintiva nos homens.
Pois bem, ainda que as coisas sejam assim, Platão propõe um ideal, uma ética, uma conduta individual e em sociedade que devem ser realizadas em prol do próprio bem e do bem maior. É preciso harmonizar as partes da alma, colocando-as em seus devidos lugares. Bem mais adiante Durant elucida: “Todo indivíduo é um cosmos ou um caos de desejos, emoções e ideias; deixe que eles entrem em harmonia e o indivíduo sobrevive e obtém sucesso; deixe que eles percam seu lugar e sua função adequados, deixe que a emoção tente se tornar tanto a luz da ação como o seu calor (como no fanático), ou deixe que o pensamento tente se tornar tanto o calor da ação como a sua luz (como no intelectual) – e começa a desintegração da personalidade e fracasso avança como a noite inevitável” (DURANT, p. 50). O indivíduo jamais poderá ser feliz e se realizar enquanto não estiver harmônico, integralmente ajustado, em sua alma. É preciso que a sabedoria e o conhecimento guiem a vida, mas não podemos nos esquecer de que a alma demanda questões sentimentais, onde se relaciona, inclusive, com as virtudes, e, por fim, os apetites que garantem a subsistência corporal.
Já se mencionou uma ressalva importante na ética platônica: “A vida correta ou virtuosa é denominada pela razão contemplativa” (SPROUL, p. 39). Para explicar esse conceito teremos de fazer uma digressão e expor a ‘doutrina do amor’, do ‘Eros’, de Platão, para que a ética seja compreendida.

EROS OU O AMOR

No diálogo denominado ‘o Banquete’, Platão fala sobre o amor. Retomando o conceito de reminiscência, ou seja, a lembrança das formas, conhecidas antes da encarnação da alma, o homem começa a almejar pelos ‘céus’: “Ao mesmo tempo que ocorre, isto [a reminiscência] desperta no homem um anseio de retornar à verdadeira morada da alma. Platão chamava este anseio, esta saudade, de eros que significa amor. A alma experimenta, portanto, um ‘anseio’ amoroso de retornar à sua verdadeira morada. [...] Ela quer se libertar do cárcere do corpo” (GAARDER, p. 103). Embora, como já observamos, não entendamos, pois, por que raios a alma foi se encarnar, já que almeja libertar-se do corpo (questão que fica ainda mais complicada se acredita-se na reencarnação), percebemos o conceito de Platão com um cunho existencial. Aquele ‘incômodo’ existencial, o desejo por paz interior, por felicidade, é, na verdade, gemidos da alma ansiando por se libertar do corpo.
Pois bem, como é pelo intelecto que se contempla as formas, e, portanto, que se experimenta as primícias da redenção da alma, ele se torna a parte que deve ser destacada, mais valorizada, na alma humana. É, pois, na contemplação do mundo das ideias que se conhece as virtudes e, acima de tudo, o bem. Portanto, nesse contexto, Chalita reforça a ideia: “Platão ensinava que Eros é uma força que instiga a alma para atingir o bem; ele não cessa de mover a alma enquanto essa não for satisfeita. O bem almejado é determinado pela parte da alma que prevalecer sobre as outras. [...] ... o melhor é que a alma seja conduzida por sua parte racional e que utilize a energia inesgotável do amor para se dirigir ao bem verdadeiro – que compreende a justiça, a honra, a fidelidade; em suma, as virtudes supremas” (CHALITA, p. 56).
Quando a força do amor não é aplicada, aproveitada para a busca do bem, em última instância, acontecem os desequilíbrios da alma. Deixar com que a alma seja dominada pelos sentimentos (paixões) ou pelos apetites trará consequências devastadoras. De novo Chalita: “De acordo com o pensamento platônico, o desprezo à razão conduz à valorização apenas das paixões pessoais, à agressividade, à imprudência, o que resulta em ação violenta contra o próximo. Segundo Platão, quando o homem se deixa levar pela paixão, pelos prazeres do corpo, pela busca sem limites da satisfação física, ele está exercendo violência contra si mesmo, porque age de maneira irracional. E ainda, se o homem age, em sociedade, dessa mesma maneira, não leva em consideração as necessidades alheias [...] [e] provoca a infelicidade de todos” (CHALITA, p. 52).

COMO O CONHECIMENTO FILOSÓFICO CONDUZ À VIDA VIRTUOSA?

Aproveitando a exposição do tema precedente, temos de tentar compreender um pouco melhor como é que a contemplação das formas levam à virtude individual. Chalita, novamente, é muito bom aqui: “Para Platão [...] o amor é a insuficiência de algo e o desejo de conquistar aquilo de que sentimos falta. O amor dirige-se para o bem, cuja aparência externa é a beleza. Existiriam muitas formas de beleza, mas a sabedoria seria a maior de todas. A filosofia, defende Platão, é o único caminho para contemplar essa suprema verdade. Para realizar-se, o filósofo é capaz de desligar-se da paixão por outro indivíduo e dedicar-se à pura contemplação da beleza” (CHALITA, p. 57). O conceito, pois, é o do anseio da alma pelo que lhe falta, e a contemplação do bem, forma última, que engloba as demais virtudes, é o anseio máximo do coração humano. Quanto mais profundo e competente como filósofo ele for, melhor se deixará guiar pela dialética formal. Sproul busca elucidar: “O verdadeiro filósofo busca a essência das coisas, os ideais. Isso lhe permite elevar-se acima da superficialidade do sofisma e do ceticismo dos materialistas. Ele busca o universal e não se satisfaz com uma lista de particulares. Depois de discernir que determinado objeto é belo ou virtuoso, ele vai além daquele particular para descobrir a própria essência da beleza e da virtude. Algo só é bom se participa ou imita a ideia perfeita do bem, e esse era o deus de Platão” (SPROUL, p. 39). É, pois, uma ascensão espiritual que leva o filósofo à realização existencial. Aristófanes coloca isso em termos de amar verdadeiramente: “Para amar verdadeiramente, devemos progredir do desejo por um corpo belo para o amor por belos pensamentos, leis, instituições, até que adquiramos uma visão mística do bem, da verdade, da beleza” (ARISTÓFANES apud CHALITA, p. 56).

PROEMINÊNCIA DO INTELECTO EM DETRIMENTO DOS DEMAIS ASPECTOS DA ALMA?

É evidente, com isso, que as demais partes não devem ser negadas. Chalita é bom para reforçar a ideia e trazer esse esclarecimento: “No plano individual, a felicidade é alcançada quando as três partes da alma agem em conjunto na busca do Bem Supremo, impulsionadas pelo amor. Para essa finalidade, a parte racional precisa reinar, ajudada pela parte emocional, obediente às determinações da primeira; a parte sensual, também necessária para a vida do homem, deve, no entanto, ser controlada – mas não suprimida, pois a satisfação da fome e da sede (atributos dessa parte da alma) é condição de sobrevivência do ser humano. O bem, ideia principal entre todas, leva à verdade, à beleza, à justiça. Em outras palavras, a alma tem de se dirigir à contemplação das ideias” (CHALITA, p. 57). Dessa vez é Nash que vem complementar nossa exposição. Embora já seja ponto pacífico que o homem precise priorizar o intelecto para se dar bem, há virtudes máximas para cada parte da alma. O homem justo, pois, é o que é o mais harmônico em cada aspecto de sua alma, conforme esclarece Nash: “Para Platão, há quatro tipos básicos de virtude, chamados de virtudes cardeais: temperança, coragem, sabedoria e justiça. Temperança (ou domínio próprio) é a própria virtude das paixões. Coragem significa fortaleza em face da adversidade, a qual é a parte espiritual da alma. Sabedoria significa excelência na seleção de meios adequados para um fim; deveria ser óbvia sua relação com a parte racional da alma. A quarta virtude, a que Platão chama de justiça, é a virtude abrangente que se faz presente quando os seres humanos são temperantes, corajosos e sábios” (NASH, p. 95-96).

O HOMEM VIRTUOSO

O homem virtuoso, pois, é aquele que contempla as virtudes e o bem. Temos de nos lembrar que essas ‘ideais’ não são, para Platão, meras abstrações. Elas são entidades muito reais. Aliás, são mais reais que a realidade sensível. São a realidade última. Portanto, conhece-las é conhecer a verdade. Conhecer a beleza, a temperança, a sabedoria, a justiça e, por fim, o bem, fará com que o homem se torne bom. Como? Aqui Platão é um fiel discípulo de seu mestre, como observa Chalita e Brisson: “... como Sócrates, apostava na razão filosófica como o caminho que conduziria o homem ao exercício da justiça e à pratica da virtude” (CHALITA, p. 52) e “Platão retoma [... uma convicção de Sócrates que está fundada em dois postulados. 1) O mal e o erro são indissociáveis; o reino do bem coincide com o reino da verdade, que se instala quando, no homem, domina o movimento do círculo do mesmo que é o lugar do conhecimento racional. 2) O desejo segue necessariamente o pensamento; eis por que é impossível desejar outra coisa que não seja o bem que se impõe à razão [...] Para lutar contra o mal que o homem não pode cometer a seu bel-prazer e que em última análise resulta da ignorância, a melhor arma é a educação dispensada pela cidade boa” (PRADEAU, p. 40). Esse, portanto, é aquele conceito socrático, que já estudamos, no qual o conhecimento do bem torna-o impreterível para o homem.
Aqui já começamos tanger à educação e à cidade boa, ou seja, projetos políticos, o que ficará para outra hora.

DEVEM TODOS SER FILÓSOFOS?

Gaarder, em meio a esta exposição, diz: “Devo dizer sem demora que Platão descreve aqui o desenrolar ideal de uma vida, pois é claro que nem todas as pessoas liberam suas almas para que elas possam empreender uma jornada de volta ao mundo das ideias. [...] O que Platão descreve é o caminho percorrido pelo filósofo. Podemos considerar sua filosofia a descrição da atividade de um filósofo” (GAARDER, p. 104).
Entretanto, embora seja o caminho percorrido pelo filósofo, particularmente pelo filósofo platônico, é o caminho ideal. Não deve ser preterido por ninguém. O Eros chamará a todos para realizarem-se na contemplação das ideias. E a contemplação delas é que irá tornar o espírito e o apetite virtuosos, como observamos anteriormente. Nesse sentido, é mister que todos sejam educados na filosofia para o próprio bem e para o bem da sociedade. Veremos que Platão não parece ter essa pretensão de educação filosófica universal, e isso o distancia de seu mestre.

CARMA


Não bastasse Platão adotar a doutrina espírita* da reencarnação, ele ainda propõe a doutrina do carma. Brisson nos informa que “o Timeu termina com a descrição de um sistema retributivo que supõe uma culpa real e, portanto, a consideração de alguma responsabilidade” (PRADEAU, p. 40). É o mesmo Brisson nos guiará à contemplação da doutrina do carma. Intimamente ligado aos conceitos antropológicos, temos a doutrina de que a encarnação segue o critério moral: “... para que um sistema retributivo como este que Platão propõe seja possível, é preciso antes que uma entidade autônoma subsista depois da morte, quando a alma se separa do corpo, e que esta entidade passe de um corpo a outro, em função da qualidade da sua existência anterior num corpo” (PRADEAU, p. 35).
A grande discussão é se Platão cria ou não na transmigração. Brisson crê que sim: “Diferente das almas dos deuses e dos demônios, toda alma humana é suscetível de atravessar o corpo de seres vivos diferentes, homem, mulher ou animal, em função da qualidade de suas vidas anteriores. Para evitar decair ou para subir na escala dos seres vivos, o ser humano deve guardar uma justa proporção entre seu corpo e sua alma: este é o objetivo da educação. O intelecto deve também permanecer dominante na alma” (PRADEAU, p.40).

A DISCUSSÃO METAÉTICA EM PLATÃO

Platão reserva parte de suas discussões à metaética, seguindo, aqui, a tradição sofística. Durant assim se expressa: “Temos, aqui, o problema fundamental da ética, o ponto crucial da teoria da conduta moral. O que é justiça? Devemos procurar a integridade, ou o poder? É melhor ser bom, ou ser forte?” (DURANT, p. 36).
Por que Durant está fazendo essas perguntas? É simples: Platão dialoga sobre essas questões. Primeiro, lida-se com a questão de, na verdade, não haver moralidade peremptória, objetiva. Na história da filosofia, tão incisivo quanto os sofistas, talvez seja Nietzsche ao assumir essa posição. Tal fato já fora observado. E quem conhece o filósofo irá se surpreender ao ver em Platão antecipações razoáveis de suas teorias. Dois trechos são excelentes. Extraímos os dois do livro de Durant: “Eu declaro que a força é um direito, e que a justiça é o interesse do mais forte. (...) As diferentes formas de governo fazem leis, democráticas, aristocráticas, ou autocráticas, visando a seus respectivos interesses; e essas leis, assim feitas por elas para servirem aos seus interesses, elas as entregam a seus súditos como sendo ‘justiça’ e punem como ‘injusto’ todo aquele que as transgredir. (...) [...] Ora, quando um homem tirou o dinheiro dos cidadãos e os transformou em escravos, em vez de ser chamado de trapaceiro e ladrão, ele é chamado de próspero e é abençoado por todos. Pois a injustiça é censurada porque aqueles que a censuram têm medo de sofrer, e não devido a qualquer escrúpulo que pudessem ter de eles mesmos cometerem injustiça” (PLATÃO apud DURANT, p. 35). Durant, mesmo, observa que essa doutrina é, mais ou menos corretamente, associada a Nietzsche.
No Górgias o sofista Cálicles diz: “Mas se houvesse um homem com força suficiente [...] ele iria desembaraçar-se, romper e fugir de tudo isso; esmagaria com os pés todas as nossas fórmulas, feitiços e amuletos, e todas as nossas leis, que pecam contra a natureza. (...) Aquele que fosse realmente viver deveria permitir que seus desejos chegassem ao máximo; mas quando eles alcançassem o ponto máximo, ele deveria ter a coragem e a inteligência para atendê-los e satisfazer todos os seus anseios. E isso eu afirmo ser justiça e nobreza naturais. Mas a maioria não pode fazer isso e, portanto, condena essas pessoas porque sente vergonha da própria incapacidade, que deseja esconder. Daí dizerem que o descomedimento é torpe. (...) Eles escravizam as criaturas mais nobres e louvam a justiça só porque são covardes” (PLATÃO apud DURANT, p. 36).
Essa, entretanto, é uma doutrina que Platão tem de descartar, visto que as formas das virtudes existem. Aliás, fora de uma teoria metafísica que justifique a ética de forma ontológica, é uma disputa inútil tentar ‘legislar’. No final tudo vai girar em torno de avaliar algo em prol do bem comum. Durant também nota isso. Aqui, em suas observações, pouco que antecipa Freud e suas concepções sócio antropológicas: “Em moral não devemos esperar inovações surpreendentes; apesar das interessantes aventuras dos sofistas e dos nietzschianos, todas as concepções morais giram em torno do bem geral. A moralidade começa com associação, interdependência e organização; a vida em sociedade requer a concessão de uma parte da soberania do indivíduo à ordem comum; e a norma de conduta acaba se tornando o bem estar do grupo” (DURANT, p. 51).
Mas, como dissemos, embora a moralidade platônica tenha seus aspectos sociais, ela é mais que isso. Ela vê uma existência real das formas das virtudes. Portanto, o ‘bem’ existe de forma concreta, e não apenas abstrata. Não se trata de uma mera abstração.
É agora, pois, que Nash observa o dilema que Platão tenta solucionar no diálogo denominado Eutífron: “É alguma coisa boa porque os deuses a ordenaram, ou os deuses a ordenam porque é boa?” (PLATÃO apud NASH, p. 93). No Eutífron, um dos primeiros diálogos de Platão, ele recomenda que “Se Deus quer x (um ato), tem de ser porque x é bom antes e independente de Deus o querer. A razão de Platão para rejeitar [que] x é bom somente porque Deus assim o quer é porque isso torna a ética arbitrária e caprichosa. [...] Se a moralidade é baseada em nada mais do que um mandamento arbitrário de Deus, é possível que Deus possa nos mandar realizar atos que reconheçamos como imorais” (NASH, p. 93). Platão faz sua recomendação por parecer falar dos deuses como sujeitos ao ‘bem’. Isso é importante ser notado, pois, a concepção teológica de Platão em relação aos deuses não corresponde à concepção teológica judaico-cristã. Quando formos estudar Anselmo perceberemos que Deus é um conceito com implicações próprias, um conceito definido, que foge à concepção antiga e pagã. O conceito escapou a Platão também. Sua solução é a concepção de deuses limitados, tal como seu demiurgo. Nash também nota isso: “Se a única alternativa a uma visão caprichosa e arbitrária da ética é crer que o que Deus quer tem de ser subordinado a um padrão de bondade que está acima ou é superior a ele, então um elemento importante da crença judaico-cristã terá de ser abandonado, a saber, a convicção de que Deus é supremo e soberano e de que nada é superior a Deus” (NASH, p. 93). Como veremos, Agostinho resolve perfeitamente esse impasse valendo-se da teologia proveniente das Escrituras Sagradas.

CRÍTICA À ÉTICA PLATÔNICA

É evidente que a ética platônica está ligada à veracidade de suas propostas antropológicas, epistemológicas e metafísicas em geral. Mas podemos, ainda, acrescentar críticas específicas ao que abordamos aqui, além das que já fizemos no decorrer do texto.
Nash faz uma afirmação que nos intriga. O conceito já está, a esta altura, esclarecido, mas há um detalhe que não abordamos: “O corpo humano é um impedimento à obtenção dessa verdade. Os sentidos físicos impedem o avanço da alma na direção da verdade. A morte liberta a alma de tal impedimento e torna possível para um filósofo alcançar aquilo que ele tem buscado [...]. Embora o filósofo deva aceitar a morte, não deve forçar a porta ou acelerar o processo por meio do suicídio [...] Para tal pessoa, a morte somente pode significar um meio de realização daquilo que o filósofo buscou durante mitos anos” (NASH, p. 87). Por que o filósofo ou qualquer outra pessoa, ciente de que o corpo é uma prisão para a alma, não podem acelerar o processo? Por que não o suicídio? Seria o modo mais rápido de se alcançar o bem almejado. Não?
Talvez alguém diga que isso não seria muito moral, e a alma não seria muito bem reencarnada. Bom, embora seja enfadonho, é necessário enfatizar que a questão de a alma, feliz desencarnada, no mundo das ideias (a concepção de almas desencarnadas como fantasmas e afins parece não estar nem perto da cabeça de Platão), buscar encarnar-se parecer um contra senso total. Mesmo assim, temos que lidar com essa explicação. Não nos parece coadunar com a filosofia de Platão dizer que é moral e correto viver neste mundo. O que parece ser mais virtuoso, acima de todas as outras ações, é a contemplação filosófica. Se é assim, a questão do suicídio parece ainda mais instigante.
Mas podemos tecer críticas à própria noção de carma. Para isso, peguemos Ferreira e Myatt: “Carma, então, é uma lei de causa e efeito absolutos. Embora as ações fluam do livre-arbítrio da pessoa, o carma é uma forma de determinismo. As ações boas ou más devem receber seu galardão ou castigo nas vidas futuras. Não há possibilidade de fugir da ‘roda do carma’. Toda história é um ciclo eterno que se repete e do qual não há escapatória. O resultado é um fatalismo prático” (FERREIRA; MYATT, p.324).
Podemos acrescentar as observações de que a ética da fusão da doutrina do carma é um tanto quanto antiética. Isso mesmo! Percebam que, na doutrina do carma alguém que padece de um mal está, na verdade, expiando sua própria culpa. Portanto, ajuda-la seria prejudica-la. Ao mesmo tempo, para que nossa própria alma ascenda, é mister que pratiquemos o bem, a caridade. No final das contas, estamos a praticar um ato externamente bom, mas que, olhado em sua inteireza, não passa de uma ação inescrupulosa e egoísta. É, pois, muito possível praticar atos externamente reconhecidos como frutos de amor, mas internamente maus. Não seria isso que Paulo estava falando no famoso capítulo 13 da epístola aos Coríntios? Notamos os seus seguintes dizeres: “E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará” (esse é o terceiro versículo).
Essa doutrina do carma é muito estranha ao sistema de Platão. Parece não se encaixar. Afinal, que força é essa que designa a necessidade da existência virtuosa, com a ameaça de reencarnar mal caso não se observe os preceitos? Seria o demiurgo? Os deuses? O bem não parece uma entidade pessoal. Tudo muito estranho.
Embora Platão pareça, em muitos aspectos, mais Kardecista que Cristão, ele abriu espaço para elucidação de muitos aspectos da fé bíblica. No decorrer de nossos estudos, principalmente na exposição de Agostinho, pretendemos demonstrar tal fato.
É interessante e aproveitável, também, sua doutrina sobre o 'eros'. Ele nota que há um tipo de anseio no homem, só não acerta exatamente o que é. Também em Agostinho, como em Pascal e Kierkegaard, iremos explorar o que nos parece ser a fonte do real anseio: Deus.

[confira, aqui, a filosofia política de Platão]
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* Quando formos estudar antropologia teológica, particularmente a disputa entre dicotomia e tricotomia, é bom nos lembrarmos desse ponto. A doutrina da tricotomia teria fundamento principal em Platão.
* Tecnicamente é o espiritismo que imita a Platão, que por sua vez deve ter aprendido essas doutrinas em alguma seita oriental, provavelmente dos pitagóricos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999. 1334 p.

BRISSON, Luc. Platão_ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

DURANT, Will. A História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.

FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. São Paulo: Vida Nova, 2007, 1220p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.


SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.

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