sexta-feira, 30 de maio de 2014

Metafísica, Antropologia e Epistemologia em Aristóteles

Não sabemos, com exatidão, se Aristóteles e Platão se desentenderam já na Academia. Mas é indubitável que Aristóteles tenha se levantado, posteriormente, após a morte de Platão, como o inimigo ferrenho do sábio de Atenas. A todo momento, como veremos, o Estagirita estará a desafiar o sábio aristocrata. Os escritores de história da filosofia reconhecem tal conflito. Talvez seja uma boa via começar a exposição do pensamento de Aristóteles expondo justamente a discórdia entre os dois brilhantes vultos da Antiguidade.

O PROJETO FILOSÓFICO DE ARISTÓTELES: A SUBVERSÃO DA METAFÍSICA E EPISTEMOLOGIA PLATÔNICA

Havia um ponto de concordância entre os dois filósofos. Concordavam que os exemplares, os individuais ou particulares das ideias, eram contingentes, i. é., estavam em constante mudança, ou, em termos heraclitianos, fluíam. Concordavam que as ‘formas’, i. é., as ideais essenciais dos particulares eram permanentes, fixas, ou seja, não fluíam. Mas discordavam num ponto fundamental: as propriedades ontológicas dessas formas. Para Platão eram entes reais, inclusive, ‘mais reais’ do que os próprios particulares. Já Aristóteles via-as como meras abstrações. Não se tratavam de substantivos concretos, mas abstratos. Em outras palavras, elas existiriam somente na mente dos homens. Não haveria, pois, uma realidade, um plano metafísico onde elas ‘residiam’. Estamos, basicamente, expondo as ideias de Gaarder: “Assim como os filósofos que o antecederam, Platão também queria encontrar algo de eterno e de imutável em meio a todas as mudanças. Foi assim que ele chegou às ideias perfeitas [...] Platão considerava essas ideias mais reais do que os próprios fenômenos da natureza. [...] Aristóteles achava que Platão tinha virado tudo de cabeça para baixo. Ele concordava com seu mestre em que o exemplar isolado do cavalo ‘flui’, passa, e que nenhum cavalo vive para sempre. Ele também concordava que, em si, a forma do cavalo era eterna e imutável. Mas a ‘ideia’ cavalo não passava para ele de um conceito criado pelos homens e para os homens, depois de eles terem visto um certo número de cavalos. A ‘ideia’ ou a ‘forma’ cavalo não existia, portanto, antes da experiência vivida” (GAARDER, p. 122-123).
O que estava em disputa, como nota Durant, era a questão da propriedade ontológica dos universais: "Deixando essa retaguarda da lógica, entramos no grande campo de batalho no qual Aristóteles decidiu com Platão a terrível questão dos universais [...]. Um universal, para Aristóteles, é qualquer substantivo comum, qualquer nome capaz de uma aplicação universal aos membros de uma classe. Assim: animal, homem, livro, árvores são universais. Mas esses universais são ideias subjetivas, não tangíveis realidades objetivas [...] tudo o que existe fora de nós é um mundo de objetos individuais e específicos, não de coisas genéticas e universais [...] é uma abstração mental prática, não uma presenta externa ou realidade' (DURANT, p. 64).

Ao passo que podemos considerar Platão um seguidor de Parmênides, portanto, um racionalista convicto, podemos considerar Aristóteles um ‘discípulo’ de Heráclito que, por sua vez, como dita a cartilha oficial, é considerado um empirista. Portanto, a subversão de Aristóteles alcança não somente um viés metafísico mas, também, epistemológico, como nota Chalita, recordando um pouco o que já dissemos e levantando pontos que exploraremos no devido momento: “Para Aristóteles, seria possível conhecer o mundo por meio da experiência sensorial, aplicando a razão nos dados fornecidos pelos cinco sentidos, descobrindo assim a essência das coisas [...]. O conhecimento é a abstração da natureza dos objetos e dos seres. [...] Não há um mundo onde as ideias existam por si mesmas; as ideias são o resultado de um processo conduzido pelo intelecto” (CHALITA, p. 61).
Para quem acha exagerado demais o termo ‘subversão’, Gaarder deixa claro o teor radical da mudança, ressaltando, novamente, nossa exposição: “uma dramática mudança de pensamento. Para Platão, o grau máximo de realidade está em pensarmos com a razão. Para Aristóteles, ao contrário, era evidente que o grau máximo de realidade está em percebermos ou sentirmos com os sentidos. Platão considera tudo o que vemos ao nosso redor na natureza meros reflexos de algo que existe no mundo das ideias e, por conseguinte, também na alma humana. Aristóteles achava exatamente o contrário: o que existe na alma humana nada mais é do que reflexos dos objetos da natureza” (GAARDER, p. 123).

Ronald Nash coloca a coisa em termos um pouco diferentes. Ele nos lembra que muitas das objeções de Aristóteles já estavam presentes na obra ‘Parmênides’ de Platão. Aristóteles estava convencido de que podia corrigir e superar seu mestre: “Como o próprio Platão reconheceu em sua obra Parmênides os mais sérios problemas de sua teoria resultam da extrema separação entre esses dois mundos. Aristóteles repetiu muitos dos argumentos encontrados em Parmênides contra a existência separada das formas. A esses, ele acrescentou a nova acusação de que o mundo das formas é uma duplicação inútil do mundo físico. Aristóteles cria que pudesse evitar a introdução dessa duplicação desnecessária do mundo que existe e ainda explicar todas as coisas que Platão tentou explicar com suas formas separadas. O ponto central da discordância de Aristóteles com a teoria das formas foi a insistência de Platão em sua existência separada. Aristóteles continuou a crer que as formas ou universais realmente existem, e cria que as formas são os únicos objetos próprios do conhecimento humano. O que Aristóteles fez [...] foi trazer para o mundo físico as formas de Platão” (NASH, p. 105)*1.
É compreensível a propensão natural a aceitar Aristóteles. Toda aquela ideia de Platão parece muito fantasiosa. Aristóteles traz, semelhante aos sofistas e, particularmente, Sócrates, os devaneios metafísicos à sobriedade terrena e, particularmente esse aspecto é que lhe dá ainda mais popularidade. O mesmo Nash explica: “Uma vez rejeitada a doutrina platônica de dois mundos separados, Aristóteles se libertou da maior razão de Platão para prender o conhecimento humano somente à razão [...] no sistema de Aristóteles, as formas (que, para Aristóteles continuavam a ser o único objeto próprio do conhecimento) não estão em um mundo no qual elas podem ser apreendidas apenas pela razão. As formas existem como partes essenciais das coisas particulares que apreendemos por meio de nossos sentidos. Dessa maneira, Aristóteles rejeitou a extrema disjunção de Platão entre a razão e a sensação, considerando-as, antes, partes integrais do processo de conhecimento” (NASH, p. 106-107). Ou seja, as portas para a ciência estavam abertas. Agora o conhecimento empírico ganha valor. Não é preciso ser exatamente um filósofo para ter um ‘conhecimento útil’ ou ‘verdadeiro’ em algum sentido, embora, como veremos (e, genericamente já vimos), há muito de conhecimento filosófico na proposta de Aristóteles. E, de fato, Aristóteles vai praticamente dar as boas vindas às ciências naturais*2. Reconhecido o projeto filosófico de Aristóteles, cientes do panorama de suas ideias, aprofundemo-nos um pouco mais em cada parte.

SUBSTÂNCIA

Comecemos a ampliar nossa compreensão de Aristóteles pela compreensão do que ele quer dizer por ‘substância’.  Substância é algo que existe, segundo Ronald Nash expondo Aristóteles: “Dentro deste mundo, a realidade primária é o que Aristóteles chamou de substância. Por substância, Aristóteles queria dizer qualquer coisa que exista ou tenha ‘ser’” (NASH, p. 106). Charles Hodge é da mesma opinião e prova a necessidade lógica de se conceber uma substância: “Por substância entende-se aquilo que existe. É a entidade na qual propriedades, atributos e qualidades são inerentes e da qual são as manifestações [...]. É algo mais do que um nome coletivo para certo número de propriedades que aparecem em combinação.” (HODGE, p. 764) ou ainda “A idéia de substância se faz necessária. Somos levados a crer que, onde vemos a manifestação de uma força, existe algo, um ente objetivo que age e do qual a força é uma manifestação. É por si só evidente que um non-ens não pode agir” (HODGE, p. 771)*3.

FORMA E MATÉRIA

Tendo definido o ser, podemos prosseguir para o próximo tópico. Aqui Nash irá, em um parágrafo, sintetizar o conceito: “Aristóteles cria que todos os seres, com exceção de Deus e de outros seres similares, são compostos de dois fatores, os quais chamou de forma e matéria. Para colocar essa distinção em termos mais simples, a matéria de uma dada substância é aquilo de que ela ‘ocorre ser feita’. [...] A forma de qualquer dada substância é o conjunto das propriedades essenciais que fazem o tipo de coisa que ela é. Tal como a forma de Platão, a forma de Aristóteles é uma essência imutável. Mas, diferente da de Platão, a forma de Aristóteles é uma parte essencial da substância que a compõe. Para Aristóteles, não há dois mundos separados; há somente um mundo, a saber, o universo físico que habitamos por meio de nossos corpos. Embora as formas existam, elas existem neste mundo terreno como parte das coisa particulares que encontramos neste mundo” (NASH, p. 106).
Vamos expandir cada ponto.
Primeiramente, a matéria. A ideia básica de matéria já temos. É a realidade ‘concreta’, aquilo do qual as coisas são compostas. Em suma, o conceito nos parece simples, Mas, tal como em Platão, o conceito é bem difícil de conceber. Talvez aqui tenhamos a tradição pré-socrática na busca pelo arché.
Percebamos o conceito básico: “A matéria consiste nos elementos físicos que constituem a coisa” (CHALITA, p. 62). Mas Berti e Nash ampliam a compreensão da doutrina aristotélica a níveis bem mais profundos.
Primeiro, Berti: “A matéria é constituída, em última análise, pelos quatro elementos terrestres; estes, por sua vez, transforma-se e passam de um estado a outro. [...] Estas transformações significam que existe uma matéria comum aos quatro elementos, que pode ser chamada de ‘matéria primeira’, que não pode, no entanto, existir fora desses elementos” (PRADEAU, p. 49-50). Uma matéria primeira, da qual se compõem os quatro elementos (como ensinava Empédocles), existe. Fogo, Água, Ar e Terra são os elementos que compõem a matéria, segundo Aristóteles. Mas ela nunca está no seu estado puro, sempre surgindo, na verdade, sob a forma de um desses elementos. Essa matéria, pois, é uma abstração teórica, como nota Ronald Nash:
 “A doutrina de Aristóteles da matéria primária pode ser sumarizada em cinco proposições: 1) Matéria primária é um substrato comum a todas as substâncias. 2) Ela não pode existir por ela mesma, isto é, sem alguma forma. Portanto, ela é uma abstração teórica. 3) Ela não tem propriedades distinguíveis sendo, portanto, não conhecível. 4) Ela é eterna; não pode ser criada ou destruída. 5) Ela é a base última da individuação, é o que, em última instância, separa coisas diferentes: cadeiras, escrivaninhas, pessoas, etc.” (NASH, p.115). A matéria primária é algo que está em todas as substâncias. Mas sempre se encontra em determinada forma. Assim, em seu ‘estado original’, não é encontrada na natureza. É, portanto, uma abstração teórica. Não há propriedades, como a matéria platônica ou o ápeiron de Anaximandro. É uma entidade eterna (aqui ele mostra sua feição ‘pluralista’, mais próximo a Demócrito).

Mas, além do conceito de ‘matéria’, i. é, o material de que a substância é feita, temos o precioso conceito de ‘forma’. Nash coloca assim: “Para Aristóteles, essência e forma eram maneiras diferentes de se referir à mesma coisa” (NASH, p. 107)*4. Chalita completa o conceito: “A forma é a estrutura interna na qual a matéria está organizada, que a ‘modela’ de modo que a coisa seja reconhecida como é” (CHALITA, p. 62). Isso nos faz observar o que foi dito alhures, em Ronald Nash. É a matéria que, no final das contas, diferencia os particulares. Os universais, as formas, subsistem nos particulares. E é a materialização desses particulares que fazem as substâncias serem individualizadas. Por individuação Nash quer dizer justamente isso: “aquilo que distingue uma pessoa do restante da classe dos seres” (NASH, p. 114). Quando temos alguns seres com algumas propriedades essenciais em comum, formamos as ideias de grupos, espécies, universais.
Quando falamos em ‘formas’ nos lembramos das entidades intelectuais, as ‘Ideias’ de Platão. De fato, o conceito é muito próximo. Mas Gaarder é pertinente em fazer a diferenciação. Primeiro ele observa que “Aristóteles entendia por ‘forma’ aquilo que todos os cavalos têm em comum [...] as ‘formas’ estavam dentro das próprias coisas; as formas das coisas eram suas características próprias” (GAARDER, p. 123) e, noutro lugar explica de forma similar: “Aristóteles também não concordava com Platão no que se refere ao fato de a ‘ideia’ galinha vir antes da galinha propriamente dita [...] a ‘forma’ galinha está em todas as galinhas e são as características que distinguem as galinhas” (GAARDER, p. 123). A esta altura acreditamos que o conceito já tenha sido facilmente capitado. A ‘cadeiridade’ das cadeiras existe, mas apenas como uma abstração teórica. As propriedades essenciais formam universais. Mas, se perguntássemos onde é que esses universais estão poderíamos responder, seguindo Aristóteles, que estão em nossa imaginação, ou, vendo por outro lado, estão nas próprias coisas: “a forma de determinado objeto não está em um mundo separado; está presente em cada coisa particular como parte de tal coisa” (NASH, p. 108). O Estagirita diria que aquelas propriedades essenciais existem nos próprios particulares. Sua existência ‘fora’ é uma criação mental, imaginária, que fazemos. Se pegarmos um grupo enorme de cavalos, iremos perceber que, excetuando um ou outro com defeitos, os cavalos apresentam sempre as características x, y e z. Portanto, na definição diríamos que A (cavalo) é x, y e z. O conceito universal de cavalo, ‘A’, foi formado a partir de características que estão presentes nos exemplares. É nesse sentido que os comentaristas dizem estarem as forma spresente nas próprias coisas. São compreensíveis, nesse momento, as observações de Sproul: “Para Aristóteles, toda substância é uma combinação de forma e matéria. Jamais encontramos forma sem matéria ou matéria sem forma [...]. Aristóteles não está dizendo que a forma ou idéia não é real. [...] As formas são reais, e elas existem nas próprias entidades individuais” (SPROUL, p. 48).
Embora esta citação de Chalita vá antecipar a discussão epistemológica, acreditamos ser boa para resumir o que aprendemos até aqui a respeito da substância, da forma e matéria, e das categorias: “Aristóteles afirmava que cada ser ou objeto tem uma substância própria, que é o conjunto de todas as suas características fundamentais, como suas dimensões, qualidades, matéria de que é feito, etc. Por meio da abstração, o homem conseguiria analisar esses atributos separadamente, mas que são inseparáveis no ser ou objeto em si. [...] Os seres e objetos também são determinados por seus acidentes: opostas à substância, as características acidentais são aquelas que não alteram a essência daquilo que um ser ou objeto é. [...] Determinar a substância de algo, portanto, é conhecer segundo Aristóteles” (CHALITA, p. 61).

ATO, POTÊNCIA E ENTELÉQUIA

Antes de irmos à epistemologia que, tal como em Platão, está intimamente associada não só à metafísica como à antropologia filosófica, vamos conhecer outro importante conceito na filosofia aristotélica, a saber, o conceito de ‘ato e potência’. Aqui Aristóteles está ciente do fluxo das coisas, de que os seres fluem, conforme nos atesta nossos sentidos. Ele precisava explicar as mudanças. Tal como no projeto de Platão, Aristóteles tinha que explicar o porque da matéria se arranjar de determinadas formas e não de outras. Para Platão, a matéria se conforma às ideias eternas. Mas, e para Aristóteles? Afinal, as ideias estão nas próprias coisas, e, a bem da verdade, são as ideias que se amoldam aos particulares, ou, vendo por outro lado, os particulares geram os universais.
Bom, primeiramente, compreendamos o importante conceito aristotélico de ‘ato e potência’. O conceito está estritamente relacionado, na filosofia de Aristóteles, ao assunto das mudanças. Chalita é o mais sucinto: “Potência e ato. A primeira é uma ou várias possibilidades, presentes num determinado objeto, de ele ser transformado em outro. [...] O ato é a realização de uma potência” (CHALITA, p. 62). Esse é o conceito básico. Mas, para elucida-lo, ou, quem sabe, reforçá-lo, vejamos como Berti e Nash o descrevem. Berti, primeiro, relaciona o conceito de ato e potência ao das formas, o que é bem interessante: “Aristóteles chama de ‘potência’ [..] a capacidade de assumir uma forma determinada – a condição na qual se encontra o substrato sem forma; ele chama de ‘ato [...] sua condição quando ela tomou uma forma; é por isso que a mudança se define também como a atualização (passagem ou ato) de uma potência” (PRADEAU, p. 49). Ou seja, temos uma substância e a possibilidade dela tornar-se outra coisa que ainda não é, mas o é apenas ‘idealmente’. Essa outra coisa que a substância pode passar a ser é uma forma. Quando a substância, potencialmente outra coisa, torna-se essa coisa que estava apenas em sua potencialidade, então houve uma atualização. Nash tenta ser ainda mais claro: “Aristóteles define mudança como a passagem da potencialidade para a atualidade. [...] Todas as coisas com as quais estamos familiarizados em nossa experiência ordinária são potencialmente outras coisas. [...] Mas, conquanto uma coisa possua diversas, talvez muitas, potencialidades, em um dado momento ela possui apenas uma atualidade. [...] A atualidade de uma coisa é determinada por sua forma, enquanto sua potencialidade reside na sua matéria. Toda mudança é a atualização de uma potencialidade de uma dada coisa” (NASH, p. 111). É importante o acréscimo de Nash de que as coisas podem encerrar diversas potencialidades, mas, no momento em que ‘olhamos’ para ela, ela é uma atualidade apenas, e essa atualidade é sua categoria ‘substância’, ou sua essência, ou, ainda, se preferirem, sua ‘forma’.

Podemos ser ainda mais investigativos e perceber que Aristóteles ponderou sobre quatro tipos de mudanças possíveis nos seres. Berti é, dessa vez, quem apresenta o conceito de forma sucinta: “Toda transformação supõe um substrato, quer dizer, uma matéria subjacente, que passa de um estado sem forma (estado de ‘privação’) a um estado em que ela possui uma, quer se trate de um lugar (movimento local ou transladação), ou de uma qualidade (alteração), de uma dimensão (aumento e diminuição), ou ainda da forma de uma nova substância (geração e corrupção)” (PRADEAU, p. 49). Parece que, ao falar dessa mudança e esse estado de ‘privação’, Aristóteles esteja remontando à disputa proposta por Parmênides quanto à possibilidade e realidade da mudança. Seja como for, para que o conceito torne-se mais claro, novamente as elucidativas palavras de Ronald Nash: “Aristóteles distinguiu quatro tipos de mudanças, cada um deles relacionado a um dos tipos de mudanças das primeira quatro categorias: qualquer mudança com relação a lugar é locomoção, tal como mover uma cadeira de um lugar para outro na sala. Qualquer mudança de qualidade é alteração; por exemplo, alguma coisa fria pode se tornar quente ou alguma coisa verde pode se tonar vermelha. Qualquer mudança com reação à quantidade é, automaticamente, aumento ou diminuição, dependendo de se a coisa aumentou ou diminuiu. Mudança com relação à substância é geração ou corrupção, dependendo de se uma substância existente é destruída ou se uma nova substância vem a existir” (NASH, p.111).
Sobre a mudança na substância, podemos, de carona com Nash, ainda, notar mais detalhes. O filósofo agostiniano nota que ao passo que as demais mudanças são ‘acidentais’, a mudança na categoria substância, geração ou corrupção, pode encerrar na perda e criação de propriedades essenciais, tornando algo potencialmente outra coisa: “Uma mudança com relação a qualquer outro aspecto que não a substância é uma mudança acidental. [...] Mas uma cadeira pode ser mudada de uma maneira tão radical e completa que Aristóteles chama tal mudança de substancial. Qualquer coisa que sofra uma mudança substancial é modificada tão completamente que se torna um novo tipo de coisa. Aristóteles chama esse tipo de mudança de geração ou de corrupção, dependendo de se focalizamos a gênese de uma nova coisa ou a interrupção da existência de uma coisa velha que já exista” (NASH, p. 111-112). Pensemos, por exemplo, numa semente. Sabemos, de modo geral, quais são as propriedades essenciais de uma semente. Mas, ao plantarmos ela, dentro de algum tempo, tomada as devidas medidas, ela se torna algo completamente novo! Há uma mudança substancial. A planta ou árvore que surge guarda muito pouco das propriedades da semente. Sua essência passa a ser outra.
Há espaço, ainda, para mais uma observação de Sproul. “A dinâmica de mudança, para Aristóteles, está ligada às ideias de potencialidade e atualidade [...] nada tem potencialidade sem antes ter atualidade. Atualidade vem antes, e é uma condição necessária para a potencialidade. Não pode haver potencialidade pura ou absoluta. Uma ‘coisa’ dessas seria potencialmente qualquer coisa ou potencialmente tudo, mas na atualidade não seria nada” (SPROUL, p. 50). Evidentemente não é possível potencialidade de algo sem forma, ou seja, sem características essenciais, ou mesmo sem substância. É a velha observação de Parmênides de que ‘ex nihilo, nihil fit’ (do nada, nada se faz)*5.

Agora, como dissemos, as mudanças não acontecem de forma completamente aleatória. O que faz uma semente de determinada coisa, salvo alguma intervenção, seguir determinado rumo e não outro? Embora o assunto da causalidade propriamente dita seja tema do próximo tópico, Sproul consegue ser muito resumido, nestas palavras, para encabeçar a discussão que queremos alavancar agora: “Aristóteles explica que a forma de uma coisa – o que ele chama de sua ‘enteléquia’ – determina sua materialidade particular [...] A enteléquia é uma força ou princípio teleológico que rege o processo de uma coisa vir a ser o que vem a ser [...]. O processo de vir a ser exige uma causa” (SPROUL, p. 49). É como se uma forma final estivesse presente nas coisas. A propósito, Nash também usa essa expressão, ‘forma final’, e apresenta o conceito com a clareza que poucos conseguem: “Em uma de suas mais intrigantes declarações, Aristóteles diz que a atualidade de uma coisa vem antes de sua potencialidade. Isso parece significar que tudo tem um propósito embutido. Se for permitido que se desenvolvam naturalmente, as coisas se desenvolverão na direção de um propósito embutido. [...] O que Aristóteles chama de enteléquia é a forma final de alguma coisa, aquilo para o qual a coisa se direciona, aquilo no que naturalmente se desenvolve, aquilo que naturalmente se torna se nada interferir no seu desenvolvimento” (NASH, p. 112). As potencialidades seguem determinados rumos naturais, conforme essa forma final, a enteléquia. Embora a seguinte citação possa ser reivindicada como pertinente para explicar simplesmente ‘ato e potência’, há uma parte realmente propícia para a reflexão do momento: “Aristóteles se interessava pelas mudanças da natureza. A substância sempre encerra a possibilidade de vir a adquirir determinada forma. Podemos dizer que a substância se esforça por concretizar uma possibilidade que lhe é inerente. Assim, para Aristóteles, toda mudança observada na natureza é uma transformação ocorrida na substância, de uma possibilidade para uma realidade” (GAARDER, p. 124-125). Gaarder foi muito feliz ao notar que há um ‘esforço’ da substância em concretizar uma possibilidade inerente a ela. Alhures Gaarder elucida o conceito: “Um ovo de galinha encerra a possibilidade de se transformar numa galinha. Isto não significa que todos os ovos de galinha chegam a se transformar em galinhas; afinal, muitos deles acabam na mesa do café da manhã como ovos fritos, mexidos ou como omelete, sem que a forma inerente ao ovo chegue a se concretizar. Do mesmo modo, porém, também é claro que um ovo de galinha jamais irá se transformar num ganso. Esta possibilidade não é inerente ao ovo de galinha. A forma de uma coisa, portanto, diz tanto sobre suas possibilidades quanto sobre suas limitações” (GAARDER, p. 125). Portanto, naturalmente, um ovo tente a tornar-se uma galinha (ou galo). Nessa tendência natural temos a sua enteléquia, ou seja, aquilo que a coisa tende a ser. É uma das possibilidades, e parece ser a ‘preferida’ da substância.
A esta altura, já é perfeitamente compreensível e aproveitável mencionarmos como Durant trabalha a doutrina. Ele também é particularmente elucidativo, e irá reforçar os conceitos de matéria e forma, bem como irá falar da ‘enteléquia’ a título simplesmente de ‘forma’: “Sua metafísica surgiu de sua biologia. [...] Tudo é a forma ou realidade que nasceu de algo que era a sua matéria ou a matéria-prima; e poderá ser, por sua vez, a matéria da qual nascerão formas ainda mais elevadas. Assim, o homem é a forma da qual a criança foi a matéria; a criança é a forma, e seu embrião, a matéria; o embrião, a forma, e o óvulo, a matéria; e assim recuando até atingirmos, de maneira vaga, a concepção da matéria sem forma alguma. Mas essa matéria sem forma seria nada, pois tudo tem forma. Matéria, em seu sentido mais amplo, é a possibilidade de forma; forma é a realidade, a realidade acabada, da matéria. [...] A forma não é apenas o formato, mas a força que dá o formato, uma necessidade e um impulso interno que modela a matéria visando a uma figura e um propósito específicos; é a realização de uma capacidade potencial da matéria” (DURANT, p. 71).

Temos seguido a metodologia de deixar, ao máximo possível, os mestres historiadores da filosofia falar em nosso lugar. Também buscamos reforçar a transmissão do conteúdo pela exposição do mesmo assunto com palavras diferentes, normalmente de outros autores. Assim seria a próxima citação, aparentemente deslocada do texto. Entretanto, ela nos abrirá espaço para discutir os próximos tópicos. Berti coloca a questão nos seguintes dizeres: “Todo ser tende a realizar completamente sua própria forma. Aristóteles tem, portanto, uma concepção global da natureza que se pode qualificar de finalista, ou de teleológica [...] que não resulta da ação de uma inteligência externa e que não implica uma finalidade única exterior; pelo contrário, este finalismo é devido à ação de um princípio inconsciente e interno, tal como a natureza justamente: é este finalismo que se manifesta na tendência dos indivíduos vivos de se alimentarem e se reproduzirem, assegurando assim a perpetuação infinita de sua espécie” (PRADEAU, p. 50). O princípio inconsciente e interno às coisas, ali mencionado, é a enteléquia. Mas, particularmente dando subsídios para as reflexões de Schopenhauer e Darwin, a afirmação final nos faz lembrar que Aristóteles era, além de filósofo, um cientista e, particularmente, um biólogo*6.

ARISTÓTELES ZOÓLOGO*7

“Porque a atenção de Aristóteles era dirigida para as coisas deste mundo, um dos benefícios de sua abordagem é quanto ele encorajou o desenvolvimento do pensamento científico” (NASH, p. 106). Sim, o conhecimento das realidades físicas é assunto primário em Aristóteles. Já notamos que assim que Aristóteles sai de Assos, já casado, vai também com seu novo amigo e fiel discípulo Teofrasto*8 para a ilha de Lesbos, onde somos informados de suas atividades como biólogos. Mas, para Durant mesmo, as reflexões que vêm a seguir originaram-se no Liceu: “Enquanto caminhava pensativo pelo seu grande jardim zoológico, Aristóteles acabou convencido de que a infinita variedade da vida podia ser disposta numa série contínua na qual cada elo fosse quase indistinguível do seguinte” (DURANT, p. 69). Vejamos o que Durant quer dizer.
É Gaarder que nos informa da primeira divisão ontológica que o Estagirita observa nos seres: “No seu projeto de ‘colocar ordem’ na vida, Aristóteles chama a atenção primeiramente para o fato de que tudo o que ocorre na natureza pode ser divido em dois grupos principais. De um lado temos as coisas inanimadas tais como pedras, gotas de água e torrões de terra. Essas coisas não encerram em si uma potencialidade de transformação. Segundo Aristóteles, elas só podem se transformar sob a ação de agentes externos. De um lado, temos as criaturas vivas, que possuem dentro de si uma potencialidade de transformação” (GAARDER, p.). Portanto, senhoras e senhores, somente os seres animados possuem enteléquia. Quanto aos seres inanimados e suas potencialidades, observaremos doravante.
Seres animados são seres dotados de ‘anima’, que em latim significa alma. Aqui Berti nos traz alguma luz: “A parte da natureza mais estudada por Aristóteles é aquela que diz respeito aos seres vivos, plantas, animais e homens. Este seres têm em comum uma alma (psykhé), o que explica por que esta ciência da alma (que chamamos hoje de psicologia) faz parte da física; Aristóteles a estuda no tratado Sobre a alma (De anima). Para ele, a alma não é uma entidade separada do corpo vivo; ela é a capacidade mesma de viver própria do corpo, em outras palavras, sua forma de estar vivo; ela é o ‘ato primeiro’ de sua potencialidade de ser vivo” (PRADEAU, p. 50). Quando Berti fala de ‘ato primeiro’, tendemos a pensar em uma primeira ‘ação’, mas o termo ‘ato’ pode nos confundir. Berti está nos dizendo da primeira forma, ou da característica essencial inicial que, inclusive, encerra a forma final como potência, a enteléquia. A alma, pois, seria esse algo acoplado ao corpo, a forma inicial e sua enteléquia, essa força misteriosa que traz uma tendência natural à substância viva.

Durant fala de graduações quase imperceptíveis na natureza. Gaarder irá resumir o assunto para, em seguida, o ampliarmos: “Para Aristóteles, a natureza progride paulatinamente das coisas inanimadas para as criaturas vivas. Ao reino das coisas inanimadas segue-se primeiramente o reino das plantas, que, ‘em relação ao reino das coisas inanimadas, parece quase animado, e em relação ao reino dos animais parece quase inanimado’. Finalmente, Aristóteles divide o reino das criaturas vivas em dois subgrupos, o dos animais e o do homem” (GAARDER, p. 129-130). Esse é o conceito base. Temos seres inanimados, o reino das plantas, o reino animal, e o reino humano. É importante notar que Durant fala de uma mudança quase imperceptível, ao que Gaarder, novamente, elucida muito bem: “Desta forma, não existem na natureza divisões realmente estanques. Podemos perceber uma transição gradual de vegetais simples para plantas mais complexas, de animais simples para animais mais complexos. Bem no alto desta ‘escada’ está o homem que, para Aristóteles, vive a plenitude da natureza” (GAARDER, p.).

Pois bem, existem níveis variados de vida. Berti nos notifica que Aristóteles vai chama-los de ‘ato segundo’. “A vida se realiza de acordo com os diferentes níveis de atividade (chamada mais tarde de ‘ato segundo’)” (PRADEAU, p. 50). O que distingue cada nível, segundo Nash, “é a sua função respectiva e a complexidade de sua estrutura” (NASH, p. 116).
Bom, para começar, no nível mais baixo possível, encontramos algo no limiar entre vivo e não vivo: “Na base da escala, mal podemos separar os vivos dos ‘mortos’; ‘a natureza faz uma transição tão gradativa do reino inanimado para o animado, que as linhas que os separam são indistintas e duvidosos’; e é possível que exista um grau de vida inorgânico... [...]há várias espécies que não podem ser chamadas, com segurança, de plantas ou de animais” (DURANT, p. 69).
Logo temos nosso primeiro nível de vida, do reino vegetal. Berti, breve, nos informa que “esses níveis são, para as plantas, a nutrição e a reprodução” (PRADEAU, p. 50). É a forma de vida mais simples, como nos informa Nash: “A forma mais simples de vida é encontrada nas plantas” (NASH, p. 116). Basicamente, pois, o que as distingue dos seres inanimados é sua capacidade de crescimento e reprodução. Essencialmente, pois, na concepção de Aristóteles, a vida envolve isso. Por isso Nash afirma: “As funções da alma vegetativa ou nutritiva envolvem os processos básicos da vida” (NASH, p. 116).

Continuamos com Nash, e ele nos informa que “Uma vez que podem desempenhar todas essas funções, os animais possuem uma alma nutritiva [...]. Mas os animais podem desempenhar funções que estão além do que as plantas são capazes, como percepção e moção. Estas são funções da alma sensível” (NASH, p. 116-117). Em suma, pois, no nível de vida animal “é preciso acrescentar para os animais o movimento e a percepção” (PRADEAU, p. 50). Além de crescer e se reproduzir, os animais se movimentam e possuem, via de regra, os cinco sentidos, ou a maioria deles, ou mesmo algo similar a eles.

Por fim, chegamos ao nível mais complexo e avançado e forma de vida: “para os homens, eles [níveis de vida] compreendem também o pensamento e suas atividades conexas” (PRADEAU, p. 50). Nash amplia: “Os seres humanos também têm uma alma nutritiva [...]. Como os animais, os seres humanos também possuem uma alma sensível. Podemos perceber e nos mover. Mas possuímos também um nível de funcionamento não encontrado nos níveis dos animais e das plantas – o raciocínio” (NASH, p. 117). Sobre o homem Gaarder diz: “Uma característica muito especial, que só ele tem: a capacidade de pensar racionalmente. Por isso [...] o homem possui uma centelha da razão divina. Isso mesmo... eu disse ‘divina’” (GAARDER, p. 130). Iremos abordar a teologia de Gaarder adiante. Retenhamos que a racionalidade, pois, é aquilo em comum que, segundo Aristóteles, o homem tem para com Deus*9.

Nash termina fazendo três observações que reforçam muito bem o conteúdo: “Assim, temos o seguinte: 1) os seres humanos possuem todos os três níveis de alma; os animais carecem da alma racional; as plantas possuem apenas a alma vegetativa. 2) Cada nível inferior da alma é necessário para os níveis superiores. Isto é, um ser vivente não poderia possuir uma alma sensível sem que possuísse também uma alma vegetativa. [...] 3) À medida que se ascende na hierarquia das formas vivas, encontram-se formas de vida cada vez mais complexas” (NASH, p. 117). Podemos imaginar cada nível como um conjunto, e nos níveis superiores estão contidos nos níveis inferiores. Assim, é possível pertencer ao grupo maior, A, sem pertencer aos grupos B e C, contidos no grupo A. É possível pertencer a B sem pertencer a C. Mas não é possível pertencer a B sem pertencer a A, e nem a C sem pertencer a A e B.

Alguém poderia imaginar, pois que os seres vivos dos níveis superiores poderiam ter mais que uma alma. A isso Berti repudia como engano: “No entanto, a categoria superior contém, sempre, potencialmente a categoria inferior; é por isso que há somente uma única alma em cada ser vivo” (PRADEAU, p. 50). As propriedades inferiores são ‘transmitidas’ às superiores.

A esta altura, principalmente pelo fato de Aristóteles conhecer bem os filósofos que o precederam, (pensamos, particularmente, em Anaximandro, Empédocles e Anaxágoras), podemos suspeitar de que Aristóteles esteja ‘fedendo a Darwin’ aqui. E Durant é especialmente sagaz ao notar isso, embora note que Aristóteles tenha rejeitado a doutrina da evolução: “Em meio, porém, a essa assombrosa riqueza de estruturas, certas coisas se destacam de maneira convincente: a vida tem aumentado continuadamente no que se refere a complexidade e poder; a inteligência tem progredido em correlação com a complexidade da estrutura e a mobilidade da forma; tem havido uma crescente especialização de funções e uma mobilidade da forma; tem havido uma crescente especialização de funções e uma continuada centralização do controle fisiológico. A pouco e pouco, a vida criou para si mesma um sistema nervoso e um cérebro; e a mente avançou, resoluta, para o domínio de seu meio ambiente. O detalhe notável, aqui, é que, com todas essas gradações e similaridades saltando aos seus olhos, Aristóteles não chegou à teoria da evolução. Ele rejeita a doutrina de Empédocles, de que todos os órgãos e organismos são uma sobrevivência dos mais aptos, e a ideia de Anaxágoras de que o homem tornou-se inteligente ao usar as mãos para a manipulação, e não para se movimentar; Aristóteles pensa, ao contrário, que o homem usou as mãos dessa maneira porque se tornara inteligente” (DURANT, p. 69)*10.

Resumindo, vamos dar a palavra a Gaarder: “Quando Aristóteles divide os fenômenos da natureza em diferentes grupos, ele parte das característica das coisas; melhor dizendo, daquilo que elas são capazes ou daquilo que elas fazem. Tudo o que vive (plantas, animais e pessoas) tem a capacidade de se alimentar, crescer e se multiplicar. Os animais e os homens têm, além disso, a capacidade de se locomover na natureza. E todas as pessoas têm, somada a tudo isto, a capacidade de pensar – ou melhor, a capacidade de ordenar suas impressões sensoriais em diferentes grupos e classes” (GAARDER, p. 130).

CAUSALIDADE

Chalita estaria discutindo o tema de ‘ato e potência’, mas acaba trazendo à baila o assunto da causalidade: “Segundo Aristóteles, tudo tende a passar da potência ao ato; tudo se move de uma para outra condição. Essa passagem sempre se daria pela ação de forças que se originam de diferentes motores, isto é, coisas ou seres que promoveriam essa mudança” (CHALITA, p. 62). Notamos que o que causa as mudanças nos seres vivos é a enteléquia. Mas, e nos seres inanimados? É certo que eles mudam, mas quais são as causas? “O primeiro objeto ou conjunto de objetos que Aristóteles buscou conhecer foi a natureza (phisis), quer dizer, o conjunto dos corpos em devir que apresentam uma evolução totalmente autônoma; aliás, é isto o que distingue as produções da atividade humana, quer dizer os objetos artificiais. Aristóteles sustenta que os objetos podem derivar de quatro categorias de causas” (PRADEAU, p. 48). Ao passo que objetos artificiais surgem por meio da intervenção não somente humana como animal em geral, também temos o surgimento de coisas por meio de ações naturais. Isso faz-nos abrir caminho para as reflexões de Aristóteles quanto aos quatro tipos, distintos porém não mutuamente excludentes, de causas*10. Quando acontece uma transformação, uma mudança qualquer, podemos pensar em uma ou mais das quatro causas, ou explicações, que virão a seguir.

Primeiro, Sproul afirma que “as mudanças são sempre operadas em coisas que já têm uma combinação de forma e matéria, que são transformadas em algo novo ou diferente. O pintor não cria uma obra prima ex nihilo” (SPROUL, p.49). Aqui já temos espaço para pensar em dois tipos de causas: materiais e formais.

A causa material é aquilo do qual algo é feito, a matéria que compõe a substância. Já observamos, mas vale a pena observar, que  “as causas materiais dos objetos naturais são, em última análise, os quatro elementos dos corpos terrestres: a água, o ar, a terra  e o fogo, associados de várias maneiras segundo as formas dos objetos de que eles constituem a matéria” (PRADEAU, p.). Notamos, também, que, a despeito disso, a noção de que coisas são feito de coisas, podendo adotar o modelo atômico atualmente concebido, é perfeitamente plausível e compatível com Aristóteles. Não é muito difícil entender a essência do que Aristóteles quer dizer aqui. Toda mudança, como apontou Sproul, é mudança em algum material.

Na causa final é que temos os fundamentos para a quinta via para o conhecimento de Deus em Tomás de Aquino, e para o posteriormente denominado ‘argumento teleológico’ para a existência de Deus.


Berti parece-nos dizer que até mesmo a enteléquia é movida, originalmente, pelo mesmo que move os seres inanimados: “Geralmente a causa destas transformações é a própria natureza, enquanto princípio interno do movimento e do repouso; mas, por sua vez, a natureza está submetida à ação motriz desencadeada pelo movimento dos céus (principalmente do sol, que determina a sucessão das estações e, por conseguinte, a alternância do calor e do frio)” (PRADEAU, p. 49). Portanto, os movimentos dos astros causam os movimentos na terra, gerando as energias e propulsões que movem as coisas. Longe de ser uma astrologia mística e barata, a ideia faz sentido. Podemos pensar na influência gravitacional que a lua exerce sobre a Terra, fenômenos observado nas marés, bem como os movimentos provocados pelo calor solar e as várias mudanças nos seres decorrentes dessa emissão de calor.
Encerrando esse assunto e levantando outro, encerremos mais uma sessão com Gaarder: “Em algumas passagens, Aristóteles explica que deve haver um Deus que colou em marcha todos os movimentos da natureza [...]. Para Aristóteles, os movimento das estrelas e dos planetas comandavam os movimentos aqui na Terra. Mas devia haver alguma coisa que fazia os corpos celestes se movimentarem. Esta coisa Aristóteles chamava de o primeiro impulsor, ou Deus” (GAARDER, p. 130-131).

O MOTOR PRIMEIRO

E o que pensa Aristóteles sobre Deus? Esse é um dos aspectos mais controvertidos da filosofia de Aristóteles, mas, sem dúvida, ele nos concedeu reflexões extasiantes nesse quesito. Usemos Chalita para sintetizar o assunto para, em seguida, expandi-lo: “Se todo o universo sofre transformações, o estagirita afirmava que deveria haver um primeiro motor, imóvel e imutável, que não seria nada em potência, mas ato plenamente realizado [...] de onde parte todo o movimento do universo, todas as transformações” (CHALITA, p. 62). Essa é, em suma, a famosa doutrina do primeiro motor de Aristóteles. Ela foi postulada, não por piedade da parte de Aristóteles, mas por uma necessidade metafísica a fim de que seu sistema não ruísse, como observa Ronald Nash: “Aristóteles não foi um homem especialmente religioso [...] Aristóteles não cultuava ou orava a seu deus. Ele cria em um ser supremo porque pensava que certas coisas no mundo não podiam ser explicadas sem a existência de um deus. Seu deus era uma necessidade metafísica, um conceito requerido para evitar que seu sistema contivesse alguns grandes lapsos” (NASH, p. 122). Quais lapsos são esses? Explicaremos.

Todo efeito tem uma causa. Daí podemos postular que toda mudança (um efeito) tem uma causa eficiente. Mas, ao pensarmos dessa forma, iremos cair num retrocesso sem fim de causas, o que seria uma absurdo. É por isso que Sproul diz: “Aristóteles compreendeu que, para fugir do atoleiro ilógico do regresso infinito, a causa última do movimento tem de ser uma causa não causada ou um motor não movido” (SPROUL, p. 51). Portanto, há de haver uma causa inicial que não é causada. A questão é, como seria essa causa? Daí Aristóteles começa a raciocinar.
Se essa causa fosse material, daí temporal e espacial, então ela seria algo mutável por definição, ou, em termos aristotélicos, seria uma substância, como as demais, com potência, que significa que ela tem potencial de mudança. Mas nada moveria, afinal, ela tem de ser um motor imóvel. Sendo assim, tem de ser uma causa imutável, sem variação de mudança. Seria, portanto, ‘ato puro’, ou seja, atualidade pura, uma forma que não admitiria potência qualquer. Nash nota isso: “Aristóteles foi forçado a concluir que a causa última do universo tinha de ser a forma pura, não misturada com nenhuma matéria. A matéria, Aristóteles pensava, é sinônima de potencialidade. Mas potencialidade implica a possibilidade de mudança, e assim, imperfeição. Portanto, o deus de Aristóteles seria pura atualidade, em outras palavras, forma sem matéria” NASH, p. 122). A noção de que essa causa última tinha de ser um ser perfeito salta sobre o conceito formulado desse ente. Como ele é imutável, ele é, portanto, perfeito, raciocina Aristóteles. Trata-se do ente último, da perfeição ontológica, acima de todos os seres. Mas, o que é ser perfeito? Poder-se-ia conceber um ser inferior que, por sua vez, fosse imutável? Aristóteles não ascendeu à sutileza do raciocínio de Agostinho e, posteriormente mais elaborado, de Anselmo. Porém, protelemos, por hora, e continuemos com nossa compreensão do Deus de Aristóteles.
Dissemos que esse motor imóvel deve ser atualidade pura. Também dissemos que não pode haver potencialidade sem atualidade. Mas é bem possível que exista ato sem potência. O ato precede a potência, por necessidade lógica. O deus aristotélico é ato puro. É, pois, mais que o primeiro motor. O conceito é mais profundo. Estamos seguindo, aqui, os seguintes dizeres de Sproul: “A causa fundamental do movimento, segundo Aristóteles, tem de estar arraigada no ser puro ou na atualidade pura. Ela tem de ser eterna, imaterial e imutável. O motor não movido não é simplesmente o primeiro em uma série de motores ou causas. [...] A atualidade tem de preceder a potencialidade, assim como o ser tem de preceder o vir a ser. Portanto, ser precede vir a ser, por necessidade lógica” (SPROUL, p. 51). Percebam o conceito. Deus é ato puro, ou seja, uma forma sem potencialidade alguma, o que é perfeitamente lógico. Reforcemos o conceito com Ronald Nash: “Pode a forma existir sozinha? A resposta de Aristóteles é sim e seu principal exemplo de forma pura é seu deus. Aristóteles entendia a perfeição de Deus de uma maneira que tornava impossível qualquer mudança no ser de Deus. Isso significa que, para Aristóteles, Deus não possui potencialidade, somente atualidade” (NASH, p. 114).
A imutabilidade é necessária porque mover-se, de qualquer maneira, implica em imperfeição. “Um ser de atualidade pura e absoluta não tem potencial irrealizado. Não está aberto a mudança, crescimento ou mutação. Um ser sem potencialidade e com atualidade pura, por não ter mudança, não pode ter nenhum tipo de movimento. Esse conceito gerou a ideia de Aristóteles de ‘motor não movido’ (SPROUL, p. 50). Se esse ser move-se de alguma maneira, concebeu Aristóteles, ele estaria buscando algo, mudando de alguma forma, o que implicaria em imperfeição. Além disso, reforçamos, uma mudança nesse deus demandaria a explicação do porque ele mudou, ou seja, uma causa final, bem como uma causa eficiente que o tenha levado à mudança. Isso Aristóteles não podia admitir*12: “Se esta causa última se movesse ou mudasse de qualquer maneira, não poderia, então, ser a causa última, pois nos veríamos forçados a perguntar porque mudou e o que o mudou” (NASH, p. 122).

Não podemos conceber que Aristóteles tenha postulado que seu deus seria a causa material do mundo também. Ele é a causa eficiente e formal de todo o universo, mas o estagirita concebia facilmente a eternidade da matéria. A matéria eterna, óbvio, é a causa material do mundo. Deus é a necessidade lógica das causas eficientes e formais: “No entanto, existe um Deus, embora talvez não o deus simples e humano concebido pelo perdoável antropomorfismo da mente adolescente. Aristóteles aborda o problema a partir do velho enigma sobre o movimento [...] Ele não aceita a possibilidade de que o movimento seja tão desprovido de começo quanto, segundo sua concepção, a matéria: a matéria pode ser eterna, porque é apenas a perene possibilidade de futuras formas; mas quando e como começou o vasto processo de movimento e formação que, finalmente, encheu o amplo universo de uma infinidade de formas? Não há dúvida de que o movimento tem uma fonte, diz Aristóteles; e se não quisermos mergulhar tristemente em um regresso infinito, tornando a pôr no lugar o nosso problema, passo a passo, indefinidamente temos que pressupor a existência de um agente motor imóvel [...], um ser incorpóreo, indivisível, sem espaço, assexuado, sem paixão, sem alteração, perfeito e eterno” (DURANT, p. 72).
É isso mesmo que acontece. Deus não cria o mundo como na concepção teológico-cristã. Mas se ele não pode se mover, como ele move o mundo? Essa é a nova questão que temos de abordar. Deus é causa eficiente enquanto causa final. Enquanto Nash destaca a problemática e enuncia a solução que apontamos: “O deus de Aristóteles não podia agir sobre o mundo como causa eficiente porque isso implicaria potencialidade nele. Preso em seu próprio sistema, Aristóteles foi forçado a dizer que seu movedor imóvel só pode produzir mudança no mundo sendo uma causa final, isto é, como um objeto do desejo” (NASH, p. 122). Sproul complementa: “O ‘deus’ de Aristóteles não ascendeu ao nível do Deus judeu-cristão. Ele permaneceu uma força impessoal. Aristóteles não tinha uma doutrina da criação. Para ele, o motor não movido é a forma última da matéria eterna, que move o mundo não pela força, mas pela atração, do mesmo modo como a luz atrai as mariposas. [...] E o motor não movido é a causa final que dirige todas as coisas para o seu fim apropriado, seu propósito teleológico fundamental” (SPROUL, p. 51). Por fim, Durant diz, tentando expressar-se como Nash e Sproul, que Deus seria a enteléquia do mundo: “Deus não cria o mundo, mas o movimenta; e o movimenta não como uma força mecânica, mas como o motivo total de todas as ações do mundo [...] Ele é a causa final da natureza, e o impulso e o propósito das coisas, a forma do mundo, o princípio da vida deste mundo, a soma de seus processos e poderes vitais, a meta inerente de seu crescimento, a estimulante enteléquia do todo” (DURANT, p. 72). Dessa forma as ações naturais sobre seres inanimados não parecem ser tão despropositais assim. E a enteléquia tem seu fundamento no ‘magnetismo ontológico’ que Deus exerce sobre as almas. Embora poeticamente seja belo, dá a entender que o mundo anseia, em algum sentido, por Deus. Que tipo de atração magnética é essa?*13

Ele é, pois, inerte? Em certo sentido, sim. Poderíamos pensar apenas em uma entidade ontológica  impessoal, uma ‘energia’. Seria possível. Mas Aristóteles a concebe como autoconsciente. Nash explica: “...a única coisa que o deus perfeito de Aristóteles pode fazer é pensar. Mas, uma vez que ele é perfeição imutável, segue-se que ele pode pensar somente sobre o que seja perfeito e imutável. Isso significa que ele pode pensar apenas sobre si mesmo” (NASH, p. 122). Durant diz ser essa autoconsciência uma inconsistência, e amplia o conceito: “No entanto, com sua costumeira inconsistência, Aristóteles representa Deus como um espírito autoconsciente. Um espírito muito misterioso, pois o Deus de Aristóteles nunca faz coisa alguma [...] é uma atividade tão pura que nunca age. É absolutamente perfeito; portanto, não pode desejar coisa alguma; portanto, nada faz. Sua única ocupação é contemplar a essência das coisa; e como ele próprio é a essência de todas as coisas, a forma de todas as formas, sua única tarefa é a contemplação de si mesmo” (DURANT, p. 72). Isso mesmo, o deus de Aristóteles é um ser que paira eternamente a pensar em si mesmo.
As diferenças para com o ‘Deus cristão’ são gritantes. A título de completude, não podemos encerrar essa sessão sem mencionar a diferença essencial: “As reflexões de Aristóteles nos levaram [...] a um conceito de um deus radicalmente transcendente, totalmente outro, o qual parece que não pode ter nenhum relacionamento direto, pessoal e essencial com as pessoas ou com o mundo. O Deus cristão é transcendente. Mas, em oposição a pensadores como Aristóteles, o Deus da fé cristã é também imanente no sentido de que ele está com seu povo e com sua criação” (NASH, p. 122).


ANTROPOLOGIA E EPISTEMOLOGIA

Já mencionamos a questão do significado de ‘alma’ para Aristóteles quando falamos de sua biologia. Vamos, agora, ampliar nossos conhecimentos sobre a concepção antropológica de Aristóteles. Basicamente seguiremos Ronald Nash, que fez uma brilhante exposição do assunto. Para começo de conversa, aqui, novamente, Aristóteles busca subverter Platão: “Aristóteles rejeitou também a separação radical de Platão entre alma e corpo. [...] Para ele, os humanos não são compostos de duas substâncias radicalmente diferentes, o corpo e a alma. São, antes, uma unidade holística; ambos, corpo e alma, são aspectos essenciais do ser humano” (NAH, p. 107).
Já vimos que o homem é um animal racional, um ente dotado de alma. Nash deixa mais clara a definição de homem em termos aristotélicos: “Seres humanos são substâncias. Nós também somos compostos de forma e matéria. A matéria é nosso corpo. Nossa forma, essa propriedade essencial que nos faz seres humanos, é nossa alma. Naturalmente, nós temos também propriedades acidentais. Cabelo é uma propriedade não-essencial, tal como a cor de nossa pele ou de nossos olhos” (NAHS, p. 108). Mas a alma não é exatamente uma substância diferente*14. É uma propriedade da substância, ou melhor, é a categoria substância (substância segunda) que os seres vivos têm, que lhe garante os atributos da vitalidade (reprodução, crescimento, locomoção, percepção e, exclusivamente no homem, intelecção). Esse é o conceito básico. Por enquanto, nenhum problema, não é? Aparentemente não, mas aí começarão os problemas.
Durant, ao buscar explicar o que é a alma para Aristóteles, enuncia um ensinamento sobre a alma no Estagirita que poderá causar-lhe problemas: “A alma é todo o princípio vital de qualquer organismo, a soma de seus poderes e processos. Nas plantas, a alma é meramente uma força nutritiva e reprodutora; nos animais, é também uma força sensitiva e locomotora; no homem, é também a força da razão e do pensamento. A alma, como a soma das forças do corpo, não pode existir sem ele; os dois são como a forma e a cera, separáveis apenas em pensamento [...]. a alma não é colocada no corpo [..] Uma alma pessoal e particular só pode existir no seu próprio corpo. Apesar disso, a alma não é material, como afirmava Demócrito; tampouco morre por inteiro. Uma parte do poder racional da alma humana é passiva: está vinculada à memória, e morre com o corpo que continha esta; mas a ‘razão ativa’, o puro poder de pensamento, é independente da memória, não sendo tocado pela decadência. A razão ativa é o universal, que se distingue do elemento individual do homem; o que sobrevive não é a personalidade, mas suas afetações e desejos transitórios, mas a mente em sua forma mais abstrata e impessoal” (DURANT, p. 73). Percebem? Uma ‘parte da alma’ subsiste e faz parte de uma alma universal. Em certo sentido, a alma subsiste após a morte. Mas Aristóteles não havia dito que ela não era uma substância diferente no homem? Aqui parece-nos muito bem uma substância individual, particular e autônoma. Bom, vamos ampliar a compreensão desse assunto.

A divisão de duas partes da alma são de cunho epistemológico, e seguem os níveis de vitalidade. Encabecemos a discussão com Nash: “Aristóteles distinguiu entre alma [...] e mente [...]. A partir daí, ele criou uma distinção entre dois aspectos da mente humana, chamando-os de intelecto passivo e intelecto ativo. [...] Há uma parte da mente, segundo Aristóteles, que é passiva no sentido de que ela recebe informação dos sentidos. Outra parte da mente é ativa no sentido de que ela age sobre aquilo que recebe do intelecto passivo. Aristóteles explicou nosso conhecimento do mundo como um produto da interação desses aspectos da mente [...]. Tal imagem sensível de uma coisa particular ainda não configura conhecimento, mas é apenas conhecimento em potencial. [...] O intelecto ativo abstrai, da particular imagem sensível, a forma (ou o elemento essencial), a qual pode ser, unicamente, o objeto de conhecimento. O conhecimento humano, portanto, depende de duas coisas: do intelecto passivo, que recebe informação dos sentidos, e do intelecto ativo, que, unicamente, desempenha a função crucial da abstração que isola a forma da coisa particular que foi percebida” (NASH, p. 115-116).

Percebam que o intelecto passivo é comum aos homens e demais animais. É a recepção das informações sensoriais. Nesse quesito Aristóteles antecipa Locke e Hume na suposição de que todo conteúdo da mente humana é produto das informações sensoriais: “Aristóteles nos chama a atenção para o fato de que não existe nada na consciência que já não tenha sido experimentado antes pelos sentidos. Platão poderia ter dito que não existe nada na natureza que não tivesse existido antes no mundo das ideias. Aristóteles achava que, desta forma, Platão estava duplicando o número de coisas” (GAARDER, p. 123-124)*15. Berti é particularmente profundo ao analisar o processo epistemológico envolvido no empirismo: “ela [a percepção empírica] consiste na atualização da capacidade de perceber [..] e, simultaneamente, da possibilidade de ser percebido (própria do objeto sensível). Esta atualização resulta da ação de uma causa já atuante, como, por exemplo, a luz para a visão ou a vibração do ar para a audição. Graças a ela, o órgão do sentido concernido assume a forma do objeto, mas não a sua matéria. É pela percepção e graças à imaginação (phantasia) que se forma a imagem (phantasma), conservando a memória como lembrança” (PRADEAU, p. 50-51). Percebam o que acontece no ato do conhecimento empírico. Nossos órgãos sensíveis potencialmente podem  perceber (e aqui Aristóteles pressupõe a perfeita competência desses órgãos). O mundo sensível tem a propriedade de ser perceptível a nossos órgãos (outra pressuposição). Essas são as causas formais. A luz parece, no caso da visão, e.g., ser a causa eficiente, aquilo que produz a atualização de nosso órgão oftalmológico. O formato do objeto percebido é captado pelo órgão, mas não sua matéria. Forma-se um ‘fantasma’ na alma. É como se a alma fosse a causa material, onde é impressa a imagem captada. A alma tem a capacidade de imaginar, e ela o faz mediante o que lhe é impresso. Eis o mecanismo epistemológico-empírico de Aristóteles. Eis o que até animais podem fazer. Eis o trabalho do intelecto passivo.

Chalita nota que “Forma e matéria, juntas, mostram-se ao homem através das informações captadas por nossos sentidos” (CHALITA, p. 62). Mas já observamos que a ‘forma’, no sentido aristotélico, é o trabalho de uma abstração, um processo ativo da alma. É aqui que entra a discussão sobre o intelecto ativo. Gaarder nos explica do que se trata: “Mas nós também temos uma razão inata. Temos uma capacidade inata de ordenar em diferentes grupos e classes todas as nossas impressões sensoriais. É assim que surgem conceitos [...]. Aristóteles não negava que o homem tivesse uma razão inata. Muito pelo contrário: para ele, a razão era precisamente a característica mais importante do homem. Só que nossa razão permanece totalmente ‘vazia’ enquanto não percebemos nada. Uma pessoa, portanto, não possui ‘ideias’ inatas” (GAARDER, p. 124)*16. A distinção do homem para com os animais reside no seu intelecto ativo, na razão, que tem o poder de organizar as informações empíricas, de detectar as abstrações e tudo o mais. Berti está, novamente, com a palavra: “a capacidade de se apropriar de uma forma, quer dizer, a intelecção, é simultaneamente a atualização da faculdade que permite compreender – própria do intelecto (por esta razão, qualificado de potencial ou passivo) -  a atualização da faculdade de ser compreendido – própria da forma. Aí também a atualização deve resultar de uma causa já atuante, que Aristóteles chama de intelecto ativo, ou produtivo; e exatamente porque este intelecto é sempre atuante, ele aparece separado da alma intelectiva, ou eterna. No entanto, Aristóteles fala muito pouco a esse respeito para que se possa compreender se este objeto é individual ou se, como tal, ele implica a imortalidade da alma intelectiva de cada homem” (PRADEAU, p. 51). A abstração teórica, da qual já muito falamos, é uma atividade exclusivamente humana. É nossa razão. Nela está compreendido dois processos de atualização também. Um é o da potência da alma humana de compreender, de abstrair as formas. A outra é o do objeto de ser compreendido, abstraído. O agente aqui é o intelecto ativo, a razão. “E assim vamos nós pelo mundo, colocando as coisas em gavetas diferentes [...] nas nossas cabeças estabelecemos a diferença entre coisas” (GAARDER, p. 127).
Agora, há quem chegue ao cúmulo de dizer que não há categoria alguma, que todas as coisas são particulares e que, portanto, toda ‘classe’ de coisas não passa de confusão e engano. Como exemplo temos “...H. G. Wells quando ele insiste que todas as coisas separadas são ‘únicas’, e não há em absoluto categorias. Isso também é meramente destrutivo. Pensar significa conectar coisas, e o pensar é bloqueado se elas não puderem ser conectadas. [...]. Assim, quando o sr. Wells diz (como o fez nalgum lugar) que ‘Todas as cadeiras são completamente diferente’, ele não profere apenas uma afirmação falsa, mas uma contradição em termos. Se todas as cadeiras fossem completamente diferentes, você não poderia chama-las de ‘todas as cadeiras” (CHESTERTON, p. 59).

Observem que alguma coisa da alma ‘morre’ com a morte do homem. Esse é, como observou Berti, um tema muito controvertido na filosofia de Aristóteles. Nash nos conta sobre a problemática: Quanto à relação entre a alma e o corpo, “Aristóteles pensava que a relação fosse mais próxima do que a de Platão. Contudo, as interpretações do que Aristóteles queria dizer têm ido desde compreensões que o consideram um fisicista, até aquelas que apresentam sua posição como similar à perspectiva holística do ser humano adotada pelo Novo Testamento. [...] A questão importante é se, no sistema de Aristóteles, a consciência terminaria com a morte do corpo. [...] Um grande número de passagens do De Anima parece incompatível com a crença em uma sobrevivência pessoal após a morte” (NASH, p. 117-118). Uma sobrevivência ‘impessoal’, pois, parece ser a posição mais compatível com o que pensava Aristóteles.
Para não sermos acusados de estarmos elencando uma discussão inédita, reforcemos a problemática com Nash, novamente: “Aristóteles disse coisas misteriosas sobre o intelecto ativo. Por exemplo, ele declarou que o intelecto ativo é ‘separável e imortal’. [...] O grande desafio para os intérpretes de Aristóteles é entender como tudo isso pode ser conciliado com o restante da psicologia do filósofo. [...] Enquanto o intelecto passivo perece quando o corpo morre, o intelecto ativo é diferente” (NASH, p. 118-120). Portanto, aquela racionalidade detentora do poder de distinguir e classificar, justamente a ‘centelha divina’ no homem, sua racionalidade, parece permanecer viva, embora sem as ‘impressões’ na alma, ou seja, sem o ‘intelecto passivo’, que guarda os ‘fantasmas’, as imagens e experiências colhidas. Portanto, morre a pessoalidade. Mas subsiste algo impessoal.
Nash nos conta sobre três tentativas de interpretar Aristóteles nesse ponto. A que lhe parece mais plausível é a que iremos citar: “Durante o terceiro século, o filósofo Plotino (205-270) interpretou o intelecto ativo como um princípio cósmico de inteligência ao qual todo ser humano está relacionado. Na morte, o intelecto dos seres humanos individuais é reabsorvido pela mente cósmica [...], a qual é eterna e impessoal [...] Séculos depois, de Plotino, sua teoria reapareceu no pensamento do árabe aristotélico Averróis (1126-1198) e dos seus seguidores cristãos, com os quais Tomás de Aquino debateu. [...] a posição de Aquino é errada e a leitura de Aristóteles feita pelos averroístas seria, provavelmente, mais acertada” (NASH, p. 120-121).

-----------------------------------------------------------------------------
*1 Durant é particularmente provocador ao notar que Aristóteles era, também, um grande amante das abstrações, tal como o mestre: “No entanto, com o usual humor da história, o jovem guerreiro assume muitas das qualidade do velho mestre que ele ataca. Sempre temos em nós um grande estoque daquilo que condenamos. [...] Aristóteles é tão implacável com Platão por que existe muito de Platão nele; também ele continua um amante de abstrações e generalidades, traindo repetidas vezes o fato simples por alguma teoria ilusoriamente enfeitada, e compelido a uma luta contínua para conquistar sua paixão filosófica por explorar o empíreo” (DURANT, p. 65).
*2 Já notamos, em artigos anteriores, que o conhecimento de viés científico estava presente já nos pré-socráticos. Já em Tales de Mileto, por exemplo, temos notáveis avanços científicos. Cf.: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/04/as-figuras-de-mileto.html.
*Essa questão pode evocar a questão cosmológica que já abordamos aqui: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/04/gafes-pra-la-de-comuns-na-tentativa-de.html.
Uma questão que nos surge é a questão das características materiais fazerem parte das propriedades essenciais. A coisa é feita de matéria. Mas o arranjo material, definido pela forma, não é, também, uma propriedade da substância primária?
*4 As Categorias, i. é., os predicados das substâncias já foram estudados no texto sobre a lógica aristotélica. Aqueles conceitos devem estar dominados para compreender a metafísica de Aristóteles.
*6 Já não se fazem biólogos como antigamente, não é mesmo Richard Dawkins?
*7 Os avanços e especulações de Aristóteles nos campos da biologia não se restringem ao que iremos expor aqui. O espaço nos impede de levantar esses dados. Para obter essas informações sugerimos que se procure no ‘História da Filosofia’ de Durant, páginas 69-71; e no livro homônimo de Pradeau, páginas 51-52.
*8 “Seu discípulo, Teofrasto (371? -288? a. C.) é considerado o pai da botânica” (CHALITA, p. 66).
*9 Não é que há uma linha antropológico-teológica que segue essa mesma concepção? Como exemplo, temos Vincent Cheung e W. Gary Crampton. Conferir a ‘Introdução à Teologia Sistemática’ do primeiro, pp. 165-168; e ‘Em Direção a Uma Cosmovisão Cristã’ do segundo, com co-autoria de Richar Bacon, p.24. Em dissertar sobre antropologia-teológica iremos abordar melhor o tema.
*10 Numa outra oportunidade iremos expor Darwin.
*11 É interessante observar que aqui está presente justamente o espírito científico, que busca explicar as relações fenomenais. Por isso é interessante outra observação de Berti: “Na Física, Aristóteles mostra que é possível determinar as causas da natureza, e, por conseguinte, alcançar uma ciência da natureza, que é justamente a física”(PRADEAU, p. 48).
*12 Quando formos expor Aquino notaremos como se lida com esses impasses óbvios à doutrina cristã.
*13 Vejam o que Berti ensina sobre: “No tratado Sobre o céu (De caelo), Aristóteles explica que os céus são esferas concêntricas, no centro das quais se encontra a esfera terrestre; sua matéria é um elemento diferente dos elementos terrestres, graças ao qual eles não conhecem nem geração nem corrupção, mas permanecem eternos: o éter” (PRADEAU, p. 49).
Portanto, a potencialidade de mudança está na matéria, já que o fato dos corpos celestes serem de outra matéria é que os faz imutáveis. Ele continua a nos informar, e aqui temos o que realmente nos importa no momento, o que é novo: “Cada céu se desloca de acordo com um movimento circular, voltando para si mesmo e deslocando em sua rotação os diversos planetas que estão ligados a ele. O movimento aparentemente irregular dos planetas se explica [...] como resultado dos movimentos de grupos de esferas, unidas por seus polos, mas girando em torno de eixos diferentes. É preciso também acrescentar que todos os céus estão englobados numa esfera extrema, que contém todo o universo; ela carrega em sua rotação todos os outros céus e receberá mais tarde o nome de esfera das estrelas fixas. Cada movimento de rotação, definido como eterno, requer necessariamente uma causa motriz que possui em si mesma uma potência infinita, não se beneficiando de qualquer intervenção externa, e, portanto, sendo ela própria imóvel: esta é a razão por que existem tantos motores imóveis [...] quanto há céus. O motor imóvel da esfera extrema é o primeiro motor imóvel; é ele que põe em movimento todo o universo, graças à esfera das estrelas fixas” (PRADEAU, p. 48-49).
Cada céu possui planetas que lhe são ligados. Eles se deslocam segundo suas próprias rotas particulares. Há uniões nos polos de cada céu, mas eles têm eixos diferentes. Isso explica a irregularidade na observação dos movimentos. Englobando todos os céus temos a esfera maior, das estrelas fixas. Cada movimento desses céus, movimentos eternos, possuem um motor imóvel. Portanto, cada céu possui um motor imóvel. O céu maior, a grande esfera que engloba tudo é o motor imóvel primordia. Ele coloca em movimento todo o universo, segundo Berti. Mas, então, ele teria que colocar em movimento os céus menores também, não? Dessa forma, existiria apenas um e não vários motores imóveis. Pradeau (ou Aristóteles) é muito contraditório aqui. Berti, adiante, amplia a discussão: “...a maneira como esses motores imóveis colocam em movimento cada esfera não é clara: a interpretação tradicional, de acordo com a qual eles colocam em movimento porque são objetos de amor e, portanto, de imitação, é de origem platônica. Como a única atividade e que não implica movimento é o pensamento, os motores imóveis são substâncias que pensam e eles são, portanto, seres vivos, eternos e completamente felizes, em outras palavras são os deuses. O primeiro deles, ou seja, o motor das estrelas fixas, como não tem nada acima de si em que pensar, só pensa em si mesmo, quer dizer, ele é ‘pensamento do pensamento’. Ele é também o bem supremo, que coloca em movimento todo o universo, tal como um general ordena um exército, ou como um senhor organiza toda a sua casa, ou como um rei governa seu reino” (PRADEAU, p. 53). É estranho, pois, ele parece creditar a necessidade do movimento ao motor primeiro, que move a ‘esfera das estrelas fixas’, e depois chama os motores das esferas ‘menores’ de motores imóveis também. Talvez seja uma tentativa de amoldar-se ao panteísmo grego de sua época. Não sabemos. O fato é que são concepções contraditórias. Seja como for, ainda temos que conceber como é que o motor imóvel exerce influência sobre a esfera das estrelas imóveis.
Além disso, quanto ao fato de esse deus (ou deuses) ser um rei (ou reis), a provocação de Durant parece muito pertinente de ser mencionada: “Pobre Deus aristotélico! Ele é um roi fainéant, um rei que nada faz; ‘o rei reina mas não governa’. Não admira que os britânicos gostem de Aristóteles; seu Deus é, obviamente, uma cópia do rei deles” (DURANT, p. 72).
*14 Eis outra definição que Nash faz: “O uso que Aristóteles faz da palavra alma é bem diferente do uso de Platão. [...] Para Aristóteles, ao contrário, a alma é a forma responsável pela criatura estar viva. Corpo e alma são dimensões diferentes da mesma substância complexa. Para Aristóteles, a alma humana é a forma de uma substância composta; a matéria dessa substância é o corpo humano” (NASH, p. 116).
*15 É aqui que Aristóteles postulou o argumento do ‘terceiro homem’, que já vimos no texto sobre Platão. Cf. http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/05/metafisica-antropologia-e-epistemologia.html.
*16 No artigo sobre o mundo das ideias de Platão, mostramos como há boas razões, no diálogo platônico intitulado Parmênides, para descrer no empirismo absoluto, à lá tábula rasa de John Locke, de que não há conhecimentos inatos. Outras crítica aristotélica famosa também foi abordada, a saber, o ‘argumento do terceiro homem’. Cf.: http://panaceiateoreferente.blogspot.com.br/2014/05/metafisica-antropologia-e-epistemologia.html

REFERÊNCIAS

ADLER, Mortimer J; VAN DOREN, Charles. Como Ler Livros. Tradução de Edward Horst Wolff e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010, 432p.

BERTI, Enrico. Aristóteles _ PRADEAU, François. História da Filosofia. Tradução de James Bastos Arêas e Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2ª ed., 2012, 624p.

CHALITA, Gabriel. Vivendo  Filosofia. São Paulo: Atual, 2002, p. 304.

CHEUNG, Vincent. Introdução à Teologia Sistemática. Tradução de Felipe Sabino de Araújo Neto e Vanderson Moura da Silva. São Paulo: Arte Editorial, 2008, 328p.

CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão. 2008, 264p.

CRAMPTON, W. Gary; BACON, Richard E. Em Direção a Uma Cosmovisão Cristã. Tradução Felipe Sabino de Araújo Neto. Brasília: Publicações Monergismo, 2009. 112p.

DURANT, Will. A História da Filosofia. Tradução de Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record. 4ª ed., 2001, 406p.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. Tradução de João Azenha Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 560 p.

HODGE, Charles. Teologia Sistemática. Tradução de Valter Graciano Martins. São Paulo:Editora Hagnos, 2001. 1777p.

NASH, Ronald H. Questões Últimas da vida: uma introdução à filosofia. Tradução de Wadislau Martins Gomes. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. 448 p.


SPROUL, R. C. Filosofia para iniciantes. Tradução de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Vida Nova, 2002, 208 p.